De Lilith e louca, toda mulher tem um pouco

De Lilith e louca, toda mulher tem um pouco

Nara Vilas Boas Bueno Marques e Lopes traz o mito da Deusa Lilith para falar de empoderamento e também sobre quanto foi difícil chegar no patamar que estamos. Houve muita mulher subjugada e morta, o deixa seu duro rastro e nos convida a combater o patriarcado e a misoginia para que as mulheres possam, simplesmente, existir….

Por Nara Vilas Boas Bueno Marques e Lopes

É impossível ignorar as nódoas que ainda persistem em relação ao sexo feminino. Por centenas de anos, as mulheres carregam o fardo – desde a concepção genésica, com a criação de Eva a partir da costela curva de Adão – de serem maculadas, condenáveis, invisíveis, silenciadas de uma maneira contínua. Foi construída uma antipatia crônica pelas mulheres, verdadeira aversão que, convenientemente, se reproduz através dos séculos, até os dias atuais, de uma maneira cruel.

À naturalização de repugnância mórbida às mulheres é dado o nome de misoginia, e esta possui implicações profundas. A origem da misoginia, igualmente, possui passado distante, resultando de complexos fatores culturais, sociais, econômicos e políticos que convergiram de um só vértice: a melindrosa existência da mulher e as relações de poder entre os gêneros, submetidas à pressuposta e contínua superioridade dos homens.

Para explicar esse fenômeno, trago Lilith, tida como a personificação da lascívia. As descrições de Lilith atravessaram os séculos: há escritos e desde três milênios antes de Cristo, bem como do século I – como o Talmud – em amuletos do século VI, como também em livros do século XIII, que se ocupam em informar homens desavisados sobre seus poderes e perigos.

Em geral, Lilith é o demônio feminino da noite com “aspecto feminino, mas também tem asas”, desde 3000 antes de Cristo, Lilith era uma “tempestade destruidora ou do vento”. Referida em culturas antigas como “uma força contrária, um fator de equilíbrio, um peso contraposto à bondade e masculinidade de Deus, porém de igual grandeza”.

Lilith acaba sendo a definição da própria mulher, um ser tentador do homem, o ser impuro por natureza, aquela que peca e perverte o homem de sua pureza, aquela que inveja as virtudes do homem e, por isso, confabula para as destruir. Lilith, pobre diaba, acaba sendo a materialização de todas as frustrações e indecorosidades inerentes dos seres humanos.

Por outro lado, tradicionalmente aos homens foram concedidas todas as definições de virtudes e dádivas mais elevadas que pudessem existir na natureza humana: o decoro, o pudor, a decência, a dignidade, a honradez, a higidez mental, o equilíbrio emocional, o raciocínio exímio etc.

O estigma de mulher sedutora enquanto provocadora que leva o homem à perdição perdura até os dias atuais. Lilith é descrita como a encarnação da mulher sedutora e perigosa, que condensa as ameaças comuns ao poderio masculino.

Acontece que, com as estruturas patriarcais bem determinadas e com os papéis das mulheres reduzidos às funções reprodutivas e à doméstica, subsiste o questionamento: qual seria o momento em que as mulheres teriam contato e ascendência sobre os homens? Por certo, no momento do sexo. Por isso, justificada nessa constatação a preocupação da religião sempre configurar o sexo e mergulhar em significados morais os prazeres da carne.

Importante destacar que, apesar dessa dominação da narrativa das mulheres (como lascívias e tentadoras da higidez masculina), a condição das mulheres sempre esteve moldada à subserviência. Esse artifício do patriarcado serviu como efetivo silenciador das mulheres. Foi com a lenta e gradativa transição ao capitalismo que as mulheres tiveram seus lugares na delimitados com mais afinco e crueldade. Essa atribuição de culpa e o escárnio sistematizado às mulheres são muito adequados para erigir a exclusão estrutural destas nas relações de poder, sobretudo no mundo capitalista.

Ao longo dos séculos, as religiões e a cultura patriarcal trataram de tolher e coibir as mulheres de qualquer tentativa de exercer influência sobre as mentes masculinas – inclusive e principalmente no âmbito sexual. Ainda nesse viés, as mulheres foram denominadas bruxas e nas fogueiras aos milhares, por centenas de anos.

Não à toa, até os dias atuais a mulher ainda é descrita como devoradora, pervertida, possuída e voluptuosa, supostamente por conseguir anular a racionalidade do homem por meio do ato sexual (ou meramente pelo imaginário sexual). Sendo assim, as mulheres continuam sendo descritas e vistas como o diabo encarnado: Lilith, o demônio alado de cabelos compridos.

Ao longo da história da humanidade, a loucura – também atrelada às possessões demoníacas – não por acaso era consideravelmente mais atribuída às mulheres em um claro recorte cultural e político de gênero.

Outro fator que prejudicou muito a condição da mulher, repercutindo nesse atrelamento à loucura, foi que a função da mulher se resumiu a ter filhos, com a modificação para o papel não remunerado exclusivamente reprodutivo. Com essa peculiaridade e com a especificidade de possuir um órgão com o fim exclusivo de reproduzir a força de trabalho.

As mulheres comumente eram reduzidas a seus úteros, do grego, hystéra. Esse complexo forjava um pensamento comum da Era Medieval: se a mulher não conseguisse ter filhos, ou seja, cumprir sua função precípua no mundo, estaria sujeita “inevitavelmente a um estado de sofrimento, a saber, a histeria.

Nesse contexto sociocultural desastroso e colaborativo para a consolidação de posição menor às mulheres foi impingido a elas o estado de loucura, devido a seus conhecimentos milenares de medicina botânica atrelados ao papel de resguardar as de sua casa, adorando seus deuses pagãos (decorrência da submissão à vida privada), somados à sua natural condição de mulher, por possuir um útero: todas essas variantes convergiam para serem inatas pecadoras e especialmente suscetíveis à loucura.

Na idade contemporânea, a loucura das mulheres consistia: qualquer menção de oposição às vontades e desmandos de algum patriarca, as mulheres eram internadas em sanatórios. Com isso, houve a internação (institucionalizada) de milhares de mulheres que pretendiam trabalhar, estudar, ter uma vida independente, não queriam ter filhos etc.

Com longínquas – que remontam a tempos e motivos diversos – o discurso de ódio às mulheres sempre serviu para sintetizar e projetar sobre estas qualquer fraqueza carnal e frustração social dos homens.

Calcado no desprezo profundo às mulheres, pelo simples fato de serem mulheres, como também na aversão a quaisquer características femininas, o discurso misógino tem por fim precípuo a submissão de mulheres, bem como o extermínio de mulheres, quando manifestado mais extremadamente. O remanescente linguístico e a cultura patriarcal atual continuam a submeter as mulheres à degradação e à subordinação ao homem: o discurso de misoginia nunca esteve tão vivo.

É crítico o atual momento, tanto em âmbito político, cultural e também social, pelo qual a sociedade brasileira está passando, a saber: o crescimento de uma cultura misógina, de desrespeito e desvalorização para com a mulher, na medida em que ideologias político-partidárias conservadoras de extrema direita tomam ainda mais corpo e espaço na sociedade.

Tal involução consiste em um sinal de alerta para que diversas vertentes da sociedade se mobilizem em vigilância a favor da . As ativistas feministas, ou aqueles que lutam pelo reconhecimento dos direitos da comunidade LGBTQI+ e de outras minorias são as novas bruxas: endemoniadas, vorazes por equidade de direitos e gozo de liberdades civis, endiabradas, sujas, rebeldes.

É necessário conhecimento e consciência para que a robustez do patriarcado e da misoginia seja combatida com veemência e constância, possibilitando, assim, a simples existência das mulheres.

naraNara Vilas Boas Bueno Marques e LopesEscritora, Especialista em Direito Eleitoral, Mestre em Direitos Humanos pela UFG e feminista.

Artigo editado por Reinaldo Bueno Filho

 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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