Anciã Nakwatxa Avá-Canoeiro encanta-se dias depois da homologação de sua terra
A anciã Nakwatxa, com idade estimada de 78 anos, uma das últimas cinco sobreviventes da etnia Avá-Canoeiro em Goiás, faleceu no último dia 4 de maio, no Hospital do Centro Norte Goiano (HCN), em Uruaçu, Goiás. Nakwatxa havia sido internada no HCN dias antes, pra se tratar de um câncer.
Por Maria Letícia Marques e Samuel Leão
Segundo informações do Hospital, tudo foi feito para que Nakwatxa realizasse o tratamento em um ambiente acolhedor. Foi substituído o leito médico por uma rede, para que ela se sentisse mais próxima de casa. Foi feita uma tentativa de adaptação da dieta e parentes, dois sobrinhos, puderam ficar com ela o tempo todo.
Em nota lamentando o encantamento de Nakwatxa, o HCN informou, também, que a equipe médica chegou a cogitar a montagem de uma fogueira do lado de fora de seu quarto, para que ela pudesse realizar seus rituais de comunicação espiritual, praticados não só pelo povo Avá-Canoeiro, mas pela grande maioria dos povos originários de tronco Tupi. Infelizmente, não deu tempo.
QUEM SÃO OS AVÁ-CANOEIRO?
Nakwatxa era sobrevivente de uma das três etnias que habitam hoje o estado de Goiás: os Karajá, que possuem um subgrupo chamado de Javaé, os Tapuio e o povo Avá-Canoeiro.
Couto de Magalhães, presidente da então Província de Goiás, por volta de 1863, teve contato com esse povo nativo e registrou a origem do nome pelo qual são chamados: “Têm esse nome por se terem tornado célebres os seus ataques contra os navegantes do (rio) Maranhão, a quem acometiam em levíssimas ubás e com agilidade tal, que chegavam sem ser pressentidos, retirando-se sem sofrer dano”, relatou.
Já o “Avá” veio posteriormente, como um etnômio, ou seja, uma descrição própria da etnia ao que é o ser. Na língua tupi-guarani significa exatamente gente, pessoa, humano. Do mesmo modo, outras etnias se autodenominam utilizando um etnômio. Os Xavante, por exemplo, atendem por A’uwê Uptabi, significando “gente de verdade” ou “pessoa real”.
Eles também são conhecidos, sobretudo na região do médio Araguaia, pelo apelido de “caras-pretas”, em referência à pintura que utilizam, respingando jenipapo ou outras fontes de tintura negra no rosto.
Com o encantamento de Nakwatxa, os Avá, que já foram centenas, mas, por conta perseguições e massacres, contam hoje com apenas alguns (entre 5 e 8) sobreviventes, divididos entre os estados de Goiás e Mato Grosso, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e do Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena (Siasi).
Em certo momento, eles chegaram a matar e evitar bebês, pela dificuldade em conseguir comida e também pelo barulho dos mesmos, que denunciaria a localização e o esconderijo deles aos caçadores e fazendeiros.
A DURA JORNADA DOS POVOS ORIGINÁRIOS EM GOIÁS
A antropóloga Poliene Bicalho relata o cenário vivido pelos remanescentes dos povos indígenas em Goiás, um dos estados mais ocupados pelo agronegócio no país, onde etnias passaram por êxodos e massacres.
“Nakwatxa era uma das sobreviventes dos vários massacres sofridos por seu povo desde a intensificação do processo de colonização pelo interior do Brasil, a partir do final do século XVII. O povo Avá sempre resistiu arduamente ao contato, e por isso a violência do colonizador e as guerras de resistência sempre estiveram presentes como práticas comuns nas relações entre a etnia e os não indígenas.
Nos séculos XIX e XX, com a intensificação das fazendas de criação de gado, a agricultura intensiva e a estruturação de barragens – como o represamento das águas do rio Tocantins para a criação da Usina Hidroelétrica de Serra da Mesa, no município de Minaçu (GO), que invadiu uma grande parcela do território Avá – esse povo vivenciou mais experiências de sofrimento, agressões e violências.
Nakwatxa perdeu o pai e muitos outros parentes, o que levou o seu povo a ser reduzido a pouco mais de seis pessoas. Com a sua morte, o grupo fica ainda menor, e a iminência da extinção aumenta. O desaparecimento é uma experiência traumática para a memória e a história de uma nação, por se tratar de um pouco da população, dos brasileiros, que se esvai e deixa de existir.
O sofrimento do Povo Avá é secular, causado pela ganância e sede desenfreada de enriquecimento de alguns poucos, às custas de vidas humanas, de perdas culturais e linguísticas irreparáveis. Infelizmente o Estado brasileiro tem grande parcela de culpa, principalmente pela morosidade com que trata um dos aspectos essenciais à sobrevivência de um povo: a demarcação de suas terras.
Ironicamente, Nakwatxa morre dias depois do atual governo finalizar o processo de demarcação do território Avá, que teve seu início na década de 1970. Que Nakwatxa possa finalmente descansar em paz e que os sobreviventes desse povo guerreiro e sofrido também, em seu território agora demarcado, finalmente! Ah, e que o povo brasileiro aprenda um dia a reconhecer os seus de verdade”.
A HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA DO POVO AVÁ-CANOEIRO
Após décadas de silêncio e tentativas de apagar a cultura do povo Avá-Canoeiro, a Comissão da Verdade (2014) expôs toda a violência do Estado para com os povos indígenas, durante a Ditadura Militar. Constam nos documentos da comissão relatos orais de indígenas vítimas da brutalidade do período ditatorial.
A população foi reduzida pelo massacre, foram oprimidos ao extremo e sofreram violentas intervenções militares com a premissa de uma possível integração dos indígenas na sociedade.
O contato forçado resultou em lamentáveis perdas para os Avá-Canoeiro, que resistiram bravamente contra a tentativa de genocídio. Nakwatxa foi uma das sobreviventes desse massacre. Ela resistiu com seu povo até os dias atuais, fugindo para lugares remotos e de difícil acesso.
Os detalhes minuciosos e cruéis que, infelizmente, tecem a História do Brasil, jamais devem ser esquecidos. Por mais dolorosa que seja, essa memória deve persistir, Nakwatxa sempre será um símbolo de força e resistência originária.
A HOMOLOGAÇÃO DA TERRA INDÍGENA AVÁ-CANOEIRO
Os cerca de 38 mil hectares da Terra Indígena Avá-Canoeiro, situados entre os municípios de Minaçu e Colinas do Sul (GO), foram homologados pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no último dia do 19º Acampamento Terra Livre, em Brasília (DF), no dia 28 de abril de 2023.
A Terra Indígena da anciã Nakwatxa foi uma das seis terras indígenas homologadas pelo Presidente Lula. O território havia sido demarcado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em 1996, porém apenas agora, neste Abril Indígena do ano de 2023, o processo de homologação foi concluído.
A homologação da TI Avá-Canoeiro, que foi postergada por anos, agora se torna uma conquista para este povo, infelizmente às portas da extinção. Esta ação demonstra a consciência do governo da necessidade de reparação histórica e garantia dos direitos indígenas.
Maria Letícia Marques – Funcionária da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Voluntária da Revista Xapuri.
Samuel Leão – Jornalista. Colunista voluntário da Revista Xapuri.
Foto de Capa: Walter Sanches.