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Homo-Cerratensis: Índio, Português, e Negro

Homo-Cerratensis: Índio, Português, e Negro

Homo-Cerratensis: Índio, Português, e Negro

EU SOU O ÍNDIO

Desde que as naus portuguesas chegaram em abril de 1500 ao litoral brasileiro, numa enseada batizada com o nome de Bahia de Todos os Santos, cerca de vinte gerações se passaram.

Nossos ancestrais indígenas já estavam na região central do Brasil há pelo menos quinhentos e cinquenta gerações. No oeste da América do Sul, América Central e América do Norte, já estávamos há muito mais tempo.

Quando chegamos ao Brasil Central, pensávamos ter descoberto o Paraíso, tal a opulência de recursos. O nos acolheu com seus rios de águas cristalinas, repletos de peixes, seus variados frutos comestíveis, sua enorme de animais e seus inúmeros abrigos.

Éramos nômades, caçadores, pescadores e coletores das sobrevivências. Morávamos em abrigos naturais ou em cavernas. Nesses locais também enterrávamos e venerávamos nossos mortos, fazíamos nossas cerimônias e deixávamos em forma de mensagens gravadas e pintadas nas paredes.

Mais tarde, domesticamos alguns vegetais nativos e nos transformamos em horticultores. Passamos a viver em áreas abertas ou aldeias, sem nunca deixar de visitar nossas antigas moradas, pois sempre respeitamos e reverenciamos a memória dos nossos antepassados.

O futuro chegou mais rápido do que imaginávamos, e o Brasil que se formou com sua ideologia economicista, passou sobre nós como um rolo compressor. Fomos estereotipados na forma de vários preconceitos. Até o título de “preguiçoso” nos cunharam, simplesmente porque não aceitávamos o regime da escravidão.

Mesmo sendo amistosos no início, logo percebemos a intenção dos portugueses de nos escravizar e nos tornamos arredios. Fomos marginalizados de várias maneiras, inclusive pela força. Para sobreviver, tivemos que nos refugiar nos rincões mais escondidos e inacessíveis.

Alguns de nós foram aprisionados, aldeados em locais artificiais e, com o tempo, catequizados. Mais tarde, em aldeamentos como o de Mossâmedes e Carretão, houve miscigenação entre nós e os africanos, resultando no tipo físico denominado pelos historiadores de cafuzo.

Também com o branco, nossa miscigenação ocorreu de maneira forçada e violenta. Mesmo quando as pequenas vilas já estavam estruturadas nos sertões do Brasil, era comum incursões para capturar entre os grupos isolados. Daí a expressão “minha vó foi pega a laço”.

Da mesma forma, nossos mitos foram coletados pelos religiosos, nos aldeamentos, e disseminados nas casas dos brancos. Levaram um pouco, mas muito pouco, porque boa parte do universo cosmogênico de nossos povos continua conosco.

Mas nossa cultura e identidade com a terra eram tão fortes que, mesmo restando somente rastros, nossa herança deixou marcas profundas na cultura brasileira, e na de outros povos, que incorporaram nossos alimentos, nossas plantas nativas, nossa dieta animal e vegetal, e nossa riquíssima farmacopeia.

Assim aconteceu com o feijão, domesticado por nós e apreciado desde o Brasil até o Texas. Também domesticamos o abacate, o abacaxi, o tomate, o pimentão, a pimenta, essas plantas tão disseminadas pelo mundo. Imaginamos: Como seria hoje a culinária da Malásia sem a pimenta?

O tabaco, domesticamos para uso em nossos rituais, para amenizar nossas dores e situações de estresse, da mesma forma que nossos irmãos do altiplano Andino usavam a coca para amenizar os efeitos da altitude e para evitar a labirintite causada pela escassez de oxigênio. Infelizmente, a sociedade que se formou deu às nossas plantas outras formas de uso.

Nossos antepassados mexicanos criaram o milho, que hoje movimenta grande parte da economia mundial, cruzando dois tipos de gramíneas nativas. Esse cereal irradiou com tamanha força e sucesso entre todos os nossos ancestrais das Américas que até a pamonha, que muitos afirmam ser comida típica de Goiás, já era conhecida por nós há pelo menos cinco mil anos.

Alguns de nossos alimentos alcançaram mercados mundiais, como o Guaraná, nossa bebida energética e refrescante, nossos cremes das palmeiras Açaí, Patauá, Bacaba, Buriti, aos quais atribuíamos o nome de sembereba, bem como o creme de Cupuaçu, as castanhas do Pará, do Caju, do Baru, do Pequi, ou os Amendoins.

Um dos nossos cremes ficou tão famoso que o mundo até esquece que fomos nós que o criamos. Trata-se do creme da amêndoa do cacaueiro, planta nativa das nossas florestas equatoriais cujo doce hoje em dia é o mais apreciado da Terra, e alguns ainda se atrevem a dizer que o melhor chocolate do mundo é o suíço. Quanta falta de conhecimento!

Domesticamos batatas, inhames e mais de trezentas raças de mandioca; ensinamos a consumi-la cozida ou assada; a processá-la na forma de tapioca, polvilho, puba, beijus; e dela fizemos o primeiro alimento desidratado da história da humanidade: a farinha.

Ensinamos ao mundo a usar o látex da seringueira, planta nativa ecótona da Amazônia e do Cerrado, cuja matéria prima hoje movimenta desde nossos corpos pelos solados de nossos sapatos, até caminhões e aviões pelos seus pneus.

Ensinamos os colonizadores a consumirem muitas de nossas plantas nativas para saciarem a fome e curarem certas doenças. Conosco, aprenderam a consumir a Mangaba, o Caju, o Pequi; a beber o chá da Douradinha e da Congonha-do-Campo, e a curar a malária usando a entrecasca do Quinino.

Passamos muitos outros segredos vegetais ao colonizador, que os incorporou na farmacopeia universal. Muitos ainda guardamos conosco, não por egoísmo, mas porque a sociedade que se formou à nossa volta nunca se importou em conhecê-los para benefício de toda a humanidade. Alguns espertalhões conseguem esses conhecimentos para uso comercial e empresarial pela biopirataria.

Homo-Cerratensis: Índio, Português, e Negro

 

EU SOU O PORTUGUÊS

No século XV, há mais de 500 anos, formávamos uma das mais desenvolvidas nações da Terra. Estávamos bem mais próximos, culturalmente falando, e possivelmente também geneticamente, das populações árabes do que das populações do interior e norte da Europa.

Nossa de Sagres, criada pelo Infante D. Henrique, que montou sua base sobre os conhecimentos astronômicos, matemáticos e cartográficos desenvolvidos pelos árabes, possibilitou uma revolução no conhecimento da cartografia terrestre e das técnicas de navegação, desde uma fábrica de navios até sistemas de orientação em alto mar. Foi com a vantagem dessa tecnologia de ponta para a época que chegamos ao Brasil, em 22 de abril de 1.500.

Ao aportar no litoral brasileiro, encontramos ali os índios de língua Tupi no final de uma diáspora. Alguns indagam, se não tivéssemos interrompido esse processo bruscamente, esses grupos teriam atingido um estágio civilizatório que os conduziria a organizações sociais mais complexas? Infelizmente não temos como responder.

O que podemos afirmar de maneira geral é que o Novo Mundo é um laboratório antropológico único pois os processos de desenvolvimento cultural aborígene aconteceram num quase isolamento, antes que ocorresse o fluxo de nossos soldados, sacerdotes e exploradores após 1492.

Nossos primeiros navios traziam populações masculinas, sobre as quais os longos períodos de solidão despertaram um grande apetite sexual. Ao entrarem em contato com as indígenas, perpetraram vários tipos de violência sexual, provocando assim as primeiras formas de miscigenação no Brasil, dando origem a um tipo físico denominado mameluco.

Mas nossa cultura e identidade com a terra eram tão fortes que, mesmo restando somente rastros, nossa herança deixou marcas profundas na cultura brasileira, e na de outros povos, que incorporaram nossos alimentos, nossas plantas nativas, nossa dieta animal e vegetal, e nossa riquíssima farmacopeia.

Ao adentrar pelo interior do Brasil, encontramos a maioria dos grupos indígenas vivendo em aldeias, com seus roçados bem estruturados produzindo mandiocas, milhos, batatas, inhames, feijões. Chegávamos em destacamentos armados, afugentando os indígenas, principalmente os do sexo masculino, violentando as mulheres e nos alimentando de seus roçados.

Para nos tornarmos dominantes, assim como aconteceu noutras áreas do Continente, o habitante nativo foi tratado de maneira desumana. Alguns impactos, devastadores, levaram vários grupos indígenas e seus saberes à extinção.

Como dominantes, impusemos nossa língua, nossa religião, nossa economia. Difundimos nossa arraigada cultura e divulgamos nossa poesia, nossas cantigas, deixando em todos os cantos os traços da nossa influência.

Através dos religiosos Jesuítas estruturamos o “Nhenhengatu”, uma espécie de língua geral derivada da língua Tupi. E, com base em alguns vocábulos da nova língua, denominamos os principais acidentes geográficos que fomos encontrando em nossa peregrinação.

Conhecedores do ambiente, em vez de nos oferecerem resistência duradoura, os índios refugiaram-se em locais pouco acessíveis.  Para evitar perdas nos confrontos, desistimos da escravidão indígena e voltamos nossas vistas para o escravo africano, cujo comércio já era bem estruturado e menos dispendioso.

Entretanto, vários grupos de portugueses continuaram caçando os índios, contribuindo de forma crescente para uma desestruturação social dos grupos indígenas.

Nas entranhas da imensidão dessa terra, por vezes ficamos perdidos e fragilizados, e aí tivemos que usar o conhecimento dos ameríndios que aqui se encontravam e dos negros que trouxemos como escravos. Com eles aprendemos a sobreviver, e dessa mistura formamos essa cultura singular que hoje identifica o povo brasileiro.

Como mais uma contribuição, aqui introduzimos o gado taurino, os equinos, os caprinos, os galináceos, incluindo a galinha-da-angola, e os porcos; trouxemos a banana, a manga, a fruta-pão, oriundas da Ásia, onde tínhamos colônias e comércios; e as laranjas, limões, limas e figos, cafés e cana-de-acúcar, originários da Península Ibérica, Arábica e África.

Deixamos, também, as lições da dominação que usamos para impedir a formação de uma consciência popular. Dificultamos ao máximo a criação de universidades e impedíamos a difusão de conhecimentos de cunho humanístico, histórico, sociológico e antropológico. Com isso, impedíamos a formação do saber e da consciência e, não por acaso, fomos os últimos colonizadores a deixarem a Colônia.

EU SOU O NEGRO

Das três raças biológicas que contribuíram para a formação do Brasileiro, eu fui a última a chegar. Tenho uma história longa, escrita desde as primeiras páginas da humanidade, ainda na mãe África.

Desde o alvorecer do homem, nós os africanos aprendemos a enfrentar diversos tipos de animais de rapina, nossos predadores. Esse fato nos deu um grande aprendizado para a sobrevivência.

Ao Brasil chegamos em condições sub-humanas, como escravos dos europeus, principalmente dos portugueses. Fomos trazidos do sul do Saara para trabalhar nos diversos afazeres, desde a mineração até edificações, prática comum nos empreendimentos de toda a Europa Ocidental.

Já havia na África grupos locais especializados em capturar homens e mulheres nos diversos grupos étnicos espalhados num imenso espaço geográfico que ia do litoral atlântico até os interiores do continente e em alguns casos até o Indico, na costa leste.

Os caçadores de escravos capturavam tanto quantos e qualquer grupo cultural que conseguissem, usando diversos meios, desde a até a , compra e subversão de agentes locais, e nos juntavam em portos de embarque na costa leste africana, de onde éramos despachados em navios negreiros.

Os mais importantes portos de embarque eram conhecidos como Porto de Senegal, Porto de Gambia, Porto Mina, Porto Vidar, Porto Calabar, Porto de Cabinda, Porto de Luanda, todos situados no Atlântico. No leste da África, também existiam os Portos Lourenco Marques, Inhabane e Zanzibar.  Era comum nos atribuir o nome do local onde embarcávamos.

Entre nós, tínhamos pouca ou quase nenhuma relação cultural, com raras exceções, (ioruba, malê), e pertencíamos a correntes gênicas separadas por longo tempo. Mesmo assim, para evitar insurreições, nos separavam e enviavam os grupos com maior proximidade para atividades em locais distantes.

No início os navios negreiros traziam, em sua grande maioria, nossas populações do sexo masculino. Só mais tarde trouxeram também nossas mulheres, que ficavam restritas aos empreendimentos no litoral. Por isso, as mulheres de origem africana só começaram a chegar ao interior do Brasil e, consequentemente, ao Cerrado, no mínimo 150 anos após o Descobrimento.

Em cultura material, trouxemos muito pouco, ou quase nada. Mas os modelos de nossas culturas estavam impressos em suas mentes, e aqui foram reproduzidos.  Trouxemos conosco estruturas completas ou fragmentadas do modelo tribal vivido na África, e isso nos deu a grande capacidade de adaptação para sobreviver no novo ambiente. O agrupamento forçado de pessoas de origem diferentes não nos impediu de construirmos nossa identidade própria.

Nossa história nessa terra é o próprio sinônimo do resgate da dignidade. Nossa cultura é tão forte que, mesmo marginalizados, deixamos diversos rastros na emergente cultura dos brasileiros.

Nossa miscigenação com o europeu foi inicialmente concretizada através do relacionamento de mulheres negras com seus senhores, cuja situação culminaria no regime de concubinato, em grandes números. Daí surgiu o tipo mulato que, por seu talento à musicalidade, contribuiu de forma decisiva para a ritimização das músicas portuguesas e para a divulgação das músicas que aprenderam com seus ancestrais.

E como viviam próximos aos seus senhores, ou suas mulheres cuidavam das crianças dos europeus, ajudaram a disseminar um universo mitológico extremamente rico e cheio de nuances poéticas e românticas.

Também fomos nós os principais responsáveis pelas corruptelas de algumas palavras portuguesas, certamente pela dificuldade em aprendê-las na sua totalidade. E quando tínhamos a oportunidade de aprender a ler e escrever português, ou outro ofício como ferreiro, alfaiate, sapateiro, marceneiro, oficineiro em geral, nos revelávamos sempre hábeis.

Alguns africanos conhecidos como Malês eram mulçumanos e já chegaram ao Brasil alfabetizados, falando e escrevendo em árabe numa época em que a maior parte da elite, brasileira ou lusitana, seus proprietários, era analfabeta.

Esses grupos arabizados na própria África pela expansão do islamismo, eram hábeis ourives e possuíam habilidades para trabalhos minuciosos. Muitos se transformaram nos contabilistas das fazendas que surgiram após a queda da mineração, ou se destacaram em atividades intelectuais.

BRASIL CENTRAL: O HOMO-CERRATENSIS

Os estudiosos da genética evolutiva afirmam que existe um nível de extrema uniformidade genética na espécie Homo-sapiens-sapiens. As moléculas de proteínas do sangue, ou a sequência dos próprios genes, mostram que há menos diferenças entre dois seres humanos em qualquer parte do mundo do que as encontradas em qualquer primata superior sobrevivente até os dias atuais.

Essa uniformidade é creditada a um gargalo genético porque passou a humanidade por volta de 70 mil anos atrás, causado por um inverno vulcânico de aproximadamente 6 anos, que reduziu drasticamente a população humana no . Toda a humanidade moderna descende, então, dessa minuta população e por isso é geneticamente uniforme.

Embora a humanidade seja uma só, os diferentes locais onde se originaram as pessoas e o fato de que os grupos humanos ficaram isolados por longos períodos são fatores que, também por aqui, moldaram as características externas na tipologia física do Homo-cerratensis.

O ambiente cerratense modelou também uma gama de variantes culturais, representadas pela língua, religião, pelos sistemas de organização social e de parentesco.  O ambiente que os acolheu, associado às diferenças culturais de cada grupo, contribuiu para uma convergência, tanto física como cultural, do Homem do Cerrado.

É comum, portanto, afirmar que três vertentes físicas e culturais contribuíram naturalmente para a formação do Homem do Cerrado: a indígena, a europeia (portugueses) e a africana (escravos). Não é tão simples assim. Essa afirmação deixa de ser verdadeira se forem explicitadas algumas das formas como aconteceu.

Dos portugueses e africanos que vieram para o centro do Brasil, poucos foram os que retornaram. Foi dessa forma que os empreendimentos mineradores cederam lugar às fazendas multifuncionais, que se transformaram em patrimônios, que se tornaram vilas e mais recentemente em cidades.

Acrescente-se a essa gamela o isolamento, que os manteve, durante longo período, em relação aos centros mais desenvolvidos.  As novidades que chegavam pelos , mascates, professores ou vigários que as capelas exigiam, chegavam na forma de fragmentos, e foi com estes fragmentos que o “sertanejo” foi modelando e estruturando sua cultura.

À medida que a sociedade foi-se estruturando e se equipando, sugiram em mais de um local, na cabeça de algumas pessoas, lampejos de genialidade, qual como geração espontânea, traduzidos em peças musicais, peças teatrais, peças literárias, pintores, artesãos, escultores. Toda essa fragmentada colcha de retalhos é uma característica singular da cultura do Homem do Cerrado. Assim se moldou o Homo-cerratensis, com uma grande predominância da cultura dominante, que no início da colonização foi impiedosamente desumana, cruel para com os índios e escravos africanos.

Dentre todos os seres viventes que habitaram e habitam o Planeta Terra, somente o Homo-sapiens-sapiens desenvolveu a capacidade de reconstruir o passado. Nosso futuro dependerá da habilidade de compreendermos e aproveitarmos aquilo que aconteceu na História.

Nos tempos modernos, também sem levar em consideração a vocação da terra e a vocação cultural do que ainda resta de autêntico na cultura do Homo-cerratensis, uma nova onda globalizada de invasões chegou e está se instalando, gerando forte impacto sobre o meio ambiente e ocasionando a desestruturação da população rural e urbana, num ritmo nunca visto na história da humanidade.

Nosso futuro também dependerá da nossa habilidade e da nossa sabedoria em lidar com essa avalanche de problemas que enfrenta o povo Cerratense.

Homo-Cerratensis: Índio, Português, e NegroFoto: pacari.org.br

Obs.: publicado originalmente em 22 de ago de 2016


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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