Marcondes Namblá: uma voz que não deve se calar

Marcondes Namblá: umavoz que não deve se calar
Por: Lucien de Campos –  Pragmatismo Político

Antes de falarmos do brutal assassinato do professor indígena Marcondes Namblá, permitam-me autorreduzir-me para o que José Saramago denomina como “egoísmo pessoal”, uma “perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for suscetível de servir os nossos interesses”.

Pode parecer estranho à primeira vista, mas meu próprio “egoísmo pessoal” pode estar relacionado com o atual cenário de negligência social frente a um processo de estimulada pelo e pela intolerância contra a comunidade indígena no sul do Brasil. E aposto que não sou o único. São milhares de brasileiros que ‒ em sua maioria inconscientemente ‒ adquirem este complexo da “cegueira mental”.

Mas de que forma poderíamos conectar este complexo com a violência indígena? Resposta esta que pode estar nas entranhas do sucateado e débil sistema educacional brasileiro. Nem escolas, nem as universidades têm-se aproximado suficientemente daqueles que são categorizados como grupos marginalizados da nossa sociedade civil. Eu, por exemplo, sou descendente de , mas com sobrenome europeu. Aliás, quando me perguntam se sou descendente de português, me limito a justificar meu sobrenome ao fato de que no passado algum lusitano se “casou” com uma índia, e, seguindo a colonialista, impôs seu sobrenome à ela e seus herdeiros. Contudo, hoje tenho a consciência de que nunca me interessei, muito menos fui estimulado a procurar uma maneira de aproximação para com a comunidade indígena, uma raiz importante da minha árvore genealógica.

Na escola, com exceção de algumas aulas de , pouco aprendi a respeito da comunidade indígena. Apenas nos limitamos a celebrarmos o Dia do Índio, sem entrarmos em grandes discussões relativamente a atual situação desta comunidade esquecida. Já na universidade foi pior. Com 17 anos migrei do Rio Grande do Sul para Santa Catarina para cursar o ensino superior. Justamente Santa Catarina, o com maior índice de violência contra indígenas. Naquele ambiente universitário não vi qualquer indígena, sequer palestras, projetos de inclusão ou discussões sobre o assunto. Além do meu desinteresse, havia o desinteresse dos colegas. Mais uma vez citando Saramago, havia ali uma “cegueira mental”, passível de servir somente aos interesses daquela pequena classe fechada.

Quando soube da primeira turma do curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal de Santa Catarina (que inclusive Marcondes Namblá integrou, formando-se em 2015), pela primeira vez questionei sobre o assunto: porquê somente na segunda década deste século que se sucede no Brasil a formação da primeira turma de ensino superior em cultura indígena? Lembro-me que a minha indignação foi se agravando na medida em que fui pesquisando este curso em diferentes universidades americanas, canadenses e australianas, descobrindo que esta matriz curricular já existia há décadas naqueles países.

Fugindo da minha experiência pessoal e se aproximando para o sujeito principal desta matéria, tremenda dor permaneço a sentir desde que soube que Marcondes Namblá foi morto a pauladas, nas primeiras horas de 2018, na cidade de Penha, Santa Catarina. Tal crime foi filmado por uma câmera de supermercado e o agressor continua foragido. Encaminhado com vida para o hospital, o professor indígena sofreu da lentidão de um precário atendimento médico, problema endêmico na brasileira, onde pobres, em sua maioria negros e índios, são os maiores afetados.

Em matéria publicada nesta quarta-feira (10), a Carta Capital relembra outro caso semelhante e ainda mais chocante pelo fato da vítima ter sido um bebê, o pequeno indígena Vitor Kaingang, degolado em 2015, quando estava a ser amamentado no colo de sua mãe em frente a rodoviária de Imbituba, Santa Catarina. A matéria também acrescenta a seguinte afirmação: “racismo e intolerância são conceitos necessários para explicar como a violência ‘gratuita’ é distribuída em Santa Catarina”.

Além do mais, a matéria não foge da realidade ao tentar comparar com o Apartheid a segregação e a negligência existente na sociedade brasileira perante a comunidade indígena. Sei que não podemos fazer juízo de qual vida é mais importante, mas é justamente isso que ocorre ao passo que a de um cantor sertanejo provoca mais comoção do que a morte de um professor indígena.

Nos centros urbanos brasileiros vemos grupos indígenas reduzidos à sua condição biológica, pois são vistos como seres humanos sem passado, sem vontade e voz política. Invocam apenas as suas feridas, revelando unicamente suas necessidades biológicas (fome, enfermidade e sede). Enquanto isto, os meios de comunicação, em companhia da bancada ruralista, alimentam este ambiente de hostilidade ao veicular ataques e informações tendenciosas sobre os indígenas.

Mas as raízes desta problemática são históricas, particularmente no estado de Santa Catarina, onde no passado, colonos descendentes de imigrantes europeus ofereciam dinheiro à quem matasse índios. Isto nos leva a concluir que a consciência social e o exercício de habilidade da empatia são, tradicionalmente, características desencorajadas pelas classes dominantes. Só estamos seguindo o fluxo da manipulação para mantermos nosso “egoísmo pessoal”.

No entanto, a voz de Marcondes Namblá ainda pode ser ouvida. Dei-me o luxo de ler o seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre a indígena da comunidade Laklãnõ. Segundo afirma Marcondes, a criança Laklãnõ adquire “o espaço sem limites, ao contrário do espaço de uma criança em contexto urbano, que é totalmente delimitado por diversos elementos que considero como instrumentos de dominação, o que no contexto de meu a pessoa não se torna naquilo para o qual ela foi predestinada, porque cada ser humano nasce com alguma finalidade em sua sociedade e por isso deve descobrir o seu destino”.

Seguindo com o pensamento de Marcondes, oxalá nós descobríssemos nosso próprio destino como cidadãos livres deste “egoísmo pessoal”. Só assim nossa sociedade se tornaria mais justa e igualitária.

Em suas considerações finais, apresentando um método crítico-analítico, Marcondes direciona seu discurso contra a construção da Barragem Norte, em razão dos seus impactos culturais e ambientais para a comunidade indígena. A voz de Marcondes nos leva a crer que essa incansável luta, que passa pela degradação ambiental indígena e se estende para a segregação urbana, deve continuar, embora tenha perdido um grande guerreiro.

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ANOTE AÍ:

Marcondes Namblá: uma voz que não deve se calar

 Esta matéria, publicada originalmene no Pragmatismo Político,  é de Lucien Campos, doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa e colaborador em Pragmatismo Político
As Referências são do autor: 

Intolerância é a arma do assassinato do professor Marcondes Namblá

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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