Mia Couto: “Cozinhar é um modo de amar os outros”

Mia Couto: “Cozinhar é um modo de amar os outros”

Por revistapazes

A avó, a cidade e o semáforo
Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as maiores suspeitas:

– E vai ficar em casa de quem?

– Fico no hotel, avó.

– Hotel? Mas é casa de quem?

Explicar, como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: uma casa de ninguém?

– Ou melhor, avó: é de quem paga – palavreei, para a tranquilizar.

Porém, só agravei – um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?

A mim me tinha cabido um prémio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prémio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha não se impressionou com meu orgulho. E franziu a voz:

– E, lá, quem lhe faz o prato?

– Um cozinheiro, avó.

– Como se chama esse cozinheiro?

Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anônima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de que nem o rosto se conhece.

– Cozinhar não é serviço, meu neto – disse ela. – Cozinhar é um modo de amar os outros.
Ainda tentei desviar-me, ganhar uma distracção. Mas as perguntas se somavam, sem fim.
– Lã, aquela gente tira água do poço?

Fonte: https://www.revistapazes.com/modo-de-amar-os-outros-mia-couto/

Foto de capa: acervo Revista Prosa e Arte