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Mortes e Kambô: Displicência, fatalidade ou um ‘problema para as autoridades’?

Kambô: Displicência, fatalidade ou um ‘problema para as autoridades’?

Por: Jairo Lima

Admito: Tenho me dedicado pouco à religião das letras cursivas. Sei que isso pode parecer displicência com a meia-dúzia de leitores que tenho mas, afirmo: é por uma boa causa, já que as notas musicais e a dedicação ao Sananga Records têm me consumido o pouco ‘livre’.

Esta semana que passou quedei-me com uma indisposição muito forte, que me afastou de minhas labutas diárias. Enfurnado em meu castelo-família deixei que os pensamentos me atormentassem um pouco, como prática para o expurgo das más energias que tentaram se impor sobre mim.

Eu cá, enfurnado, tentei passar despercebido o máximo que pude, mas, na era do Facebook e do endiabrado e intrometido ‘zap-zap’ tal atitude é inútil.

E eis que, entre as mensagens necessárias, as desnecessárias e as preocupantes recebi uma de um conhecido, não tão antigo para alçar-lhe ao escaninho das velhas amizades, mas, nem tão recente que não me tomasse a atenção quando me busca. Essa mensagem trouxe uma triste notícia: Mais um chileno morreu após uso do . Com essa fatalidade totalizaram-se quatro mortes, só neste ano de 2018, sendo que, dessas, três foram de chilenos.

A mensagem estava carregada de tristeza, sensível ao ler as pequenas e brilhantes letras da tela do , mesmo que, em poucas missivas, basicamente só informasse o caso e, também, desabafava sobre o pouco que as ‘autoridades’ fazem para evitar estes casos.

Bem… certo. Papo difícil esse.

Fiquei matutando sobre esta mensagem (e as anteriores que davam-me detalhes das demais fatalidades), buscando enxergar algum caminho para combater essa triste situação que, ano apś ano, repete-se. Difícil uma solução para isso…

Todos os anos o Acre Indígena é rota de toda de pessoas, das boas, das más, das perdidas, das que se encontraram, das curiosas, das que sabem o que querem, das que não tem idéia do que querem, e, infelizmente dos espertalhões que vem em busca de produtos para se darem bem no circuito xamânico. Misturados nesses perfis todos, os chilenos são os que mais desembarcam por estas bandas, pelo menos aqui no Juruá. Muitos deles, vindo sós ou em grupo.

Controlar esse fluxo que vai as aldeias é uma tarefa quase impossível, corrijo, impossível, sem tentar contra o direito a autonomia das comunidades .

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Mas foquemos primeiramente no caso das mortes.

Podem perguntar: “O kambô matou essa gente?” – Não! O que matou essas pessoas foram outras causas, como AVC, ataque cardíaco, colapso pulmonar, etc. O kambô foi somente o vetor que ocasionou esses quadros clínicos. Quadros que não teriam ocorrido caso houvesse prudência, bom senso e clareza tanto de quem aplica quanto, e principalmente, de quem busca receber essa medicina indígena.

Medicina esta que eu mesmo já escrevi a respeito outras vezes, alertando para o fato de ser uma das mais fortes e invasivas da ‘farmacologia’ indígena, e que deve ser usada com muita prudência, seguindo os ritos e os cuidados necessários. Entre estes cuidados temos o básico: o saber de quem aplica e as condições físicas de quem recebe.

O mercado ‘negro’ da venda me medicinas indígenas está em franca expansão. De todos os cantos pululam falsos pajés, pseudo-xamãs, terapeutas espirituais (aff), e toda sorte de falsários e malucos que displicentemente brinca com a saúde espiritual e material de pessoas que, em quase sua totalidade, estão em busca de algo a mais em suas vidas, seja a cura espiritual, seja a material.

O kambô nesse circuito todo está cada vez mais assumindo o protagonismo nesses círculos ‘do ‘, do ‘poder’, ‘do caminho’ e outras presepadas do tipo. Poucos, pouquíssimos são os que sabem realmente ministrá-lo sem pôr em risco a saúde de quem recebe. Assim como a ayahuasca, o e a sananga o kambô está espalhado por este mundão doido, trazendo tanto a cura quanto a desgraça.

Tem figuras que usam-no como se usassem cocaína: mais pelo ‘barato’ que dá. Absurdo, uma idiotice absurda, porém real.

Essa medicina rende muita grana para os aplicadores fora das comunidades indígenas, onde a maioria do ‘produto’ é adquirido. Geralmente o representante ou um grupo organizado, de alguma seita doida new age, que mistura de tudo um pouco, achando que estão seguindo o caminho da evolução, passam uns dias visitando as aldeias, ou as comunidades extrativistas, onde, além de deixarem seu cármico e material, compram as ‘paletas’ de kambô a ‘preço de banana’ e, depois, travestem-se de curadores ou algum tipo de Gandalf qualquer, com cheiro de incenso vencido e realizam pseudo-curas, ou mesmo, ‘rodas de medicina’, onde usam de tudo e, para fechar com chave de ouro, tacam o kambô na galera.

A culpa seria das comunidades ou pessoas que vendem para essas figuras? Não creio. Na verdade não creio nem um pouco, sabe porque, explico: a lógica indígena de dar acesso aos bens e medicinas de cura do seu é algo natural, pois, assim como recebem, não vêem o erro em disponibilizar. Claro que é preciso trabalhar isso nas comunidades, alertando os txai para os ‘novos tempos’, onde, quando a coisa dá errada (e geralmente dá), a cangalha vai sempre pra cima deles porque “venderam sua cultura”… besteira.

A meu ver, primeiramente o espatifado está sob os ombros de quem vem fazendo essas cagadas mundo afora, e vejam bem: são casos onde são os ‘pajecas’ que deram uma de Merlin e aplicaram o kambô. Nesses anos todos que venho de olho nessa triste situação só sei de dois únicos casos onde indígenas (indígena de verdade) estivessem envolvidos.

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E o que as ‘autoridades podem fazer?’. Respondo: muito pouco, acreditem. Não podemos simplesmente por todo estrangeiro como um suspeito de tráfico de medicinas, ou de biopirataria. Com certeza, seria uma afronta abordar todo chileno e revista-lo como um meliante, correto?

Seria um absurdo fazer todos que forem a uma aldeia ter que esvaziar seus bolsos, tirar as roupas e abrir as malas para as ‘autoridade’ verificarem se está tudo ok.

Negativo. Essa atitude ‘bolsonarista’ não resolve nada, só marginaliza as pessoas e, pior, sobra, no fim das contas, para as comunidades. Um Estado Policial é, antes de tudo, marginalizador e limitador de liberdades. E, liberdade vigiada não é liberdade, é, sim, uma quase prisão.

É preciso haver informação ‘para fora’, ou seja, que a mensagem sobre a prudência e o cuidado seja espalhada por todos os lados e, acima de tudo, que o ‘usuário’ das medicinas alternativas tenha o bom senso de saber suas condições e, acima de tudo, as condições de quem se disponibiliza a ministrar essas medicinas. Outra coisa: não se pode terceirizar a responsabilidade, passar pras organizações, pras comunidades, sem antes o controle e o cuidado partir das próprias pessoas.

Nesse mundo caótico que vivemos ultimamente vemos a cada dia exemplos de que o ‘mercado’ é que faz a demanda. Temos que combater isso com informação e campanha.

Não estou aqui admoestando quem, infelizmente, foi uma vítima, mas, sim, exortando a todos que não sigam ou se submetam de maneira tão passiva, e que, antes de tudo, nesse caminho ‘alternativo’ é preciso sempre estar desconfiado pois o mesmo é cheio de armadilhas e perigos.

Os que me acompanham através de meus textos sabem o quão crítico sou desse mercado de produtos medicinais indígenas. Crítica esta que estendo, inclusive, às comunidades que abrem suas portas para visitantes sem atentar para a ‘ficha corrida’ desses visitantes. Mas essa situação é algo que, isso posso afirmar, temos buscado orientar e, felizmente, muitas comunidades estão se organizando e, graças a isso, ficando imunes a parasitas como esses grupos de ‘bichos-grilo do mal’.

Nesse mundão tem muita gente séria, que tem zelo e cuidado com seu espiritual e curativo. Infelizmente, nesse balaio doido que a coisa está se tornando, a menos que comecemos a expor esses calhordas assassinos que se travestem de curadores e xamâs, pessoas sérias terão sua imagem cada vez mais prejudicada.

É preciso ‘se ligar’, meu povo… vamos sempre conversar e orientar nossos conhecidos que quiserem experimentar as medicinas indígenas, ou mesmo, se submeter a um tratamento com algum curador espiritual. Mesmo sem ser de maneira ‘pública’, vamos repassar informações a todos, mostrando esses vampiros de vidas e de espíritos para que todos saibam quem são, e assim os evite.

Toda medicina natural é especial e cheia de possibilidades, mas é preciso saber usá-las. E para usá-las é preciso, acima de tudo bom senso e prudência.

Pra fechar esse papo, afirmo que nesse circuito xamânico espalhado aí pelo mundo mundo se ‘balançarmos a roseira’ vai cair um bucado de parasitas, ficando bem pouquinhas rosas que valham à pena colher.

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ANOTE AÍ:

Jairo Xapuri 1

 

Jairo Lima  é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.

Nota do autor: Conheça a página do Crônicas Indigenistas  no Facebook. Lá você encontrará, além de nossos textos, várias e diversificadas informações. Também temos os canais do YouTube: Crônicas Indigenistas – Informação e Movimento  e; Crônicas Indigenistas – Música Indígena.

Imagens 1 e 2, internas: Mardilson Torres, selecionadas por  Jairo Lima. Foto: herptofauna.com.br

 

 

 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

revista 119

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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