NASCE A PARTEIRA

NASCE A PARTEIRA

NASCE A PARTEIRA

Eu só tinha 18 ano. E eu endoidei lá dentro, na cozinha. Parecia que vinha uma coisa assim ni mim. Parece que veio uma pessoa de mão pesada assim com uma agulha e bateu na minha cabeça. E meu corpo pegô fogo. Fogo pra lá, fogo pra cá e eu oiava assim o que que era, o sol tava tinino de quente. Ué, será que é o sol? 

Por Florentina Pereira Santos 

Passou aquilo e eu fui lá e bebi uma água. Falei, mas eu vou lá naquela porta. Fui lá na porta, a velhinha empurrô, não deixou eu entrar. 

– Deixa eu entrar, eu quero ver minha mãe. 

– Cê não pode, não. Que que cê veio fazê aqui?

Eu voltei pra lá, pra trás, chorei, chorei. Comecei a brigá com Deus:

– Deus, não faz isso comigo, não, me ajuda, minha mãe tá morta, e as muié não qué falá comigo. 

Aí veio a mão de novo, aí o fogo pegou mesmo. Aí eu não respeitei ninguém não, fui lá, a veia veio me empurrô. 

– Agora é comigo, agora é comigo, vô entrá!

– Cê num pode!

– Posso.  

Entrei, mamãe estava semimorta, as mão gelada, os pé gelado.

– Eu agora vou cuidá de minha mãe. 

Subi em cima da cama. E peguei essa dona Maria, minha fia, com toda minha força. Parecia que eu tinha engolido alguma coisa. Agarrei ela, era uma tampinha assim, pequenininha assim, e gordinha. E ela falava que cortava a barriga pra tirá o mininu. Eu olhava prum lado, eu num via a faca, porque se é que corta, as parteira que corta, eu num sei cortá, eu num vô cortá não. 

E aí eu fui dano massagem nessa barriga de dona Maria… E ia prá lá, pra cá, leva pra lá, pra cá, e ela prostrada. Já tava com os lábio tudo roxo, o pé já tava mei inchado, o pé dela, de tanto ficá deitada. E as muié me abandonô, correu tudo lá pra fora, largô, largô até a porta aberta. Ficou com raiva, né?

Aí eu fiquei assim orando, falando né?

– Ô meu Deus, o que eu faço agora, mamãe vai morrê, vai me deixá com quantos mininu. E esse bebezin que vai saí aí, como é que eu vô dá de mamá a esse bebê?  

E chorando, né. E ela lavada de suor. E eu comecei a suá também. Daí a pouco eu ouvi uma voz falá comigo:

– Bota ela de joelho.

Eu virei, oiei pra vê se as muié tava falando comigo, mas elas nem queria falar comigo mais. 

– Põe ela de joelho. 

Eu só coloquei o joelho direito por cima do esquerdo, levantei o esquerdo aqui pra cima, só disci ela um pouquinho, botei aqui. Sentei ela aqui, o cocci dela aqui em cima, e fiquei com ela ali.

Daí a pouco eu vi ela foi respirano. Eu falei: tá morreno…

E eu senti, eu peguei, botei a mão aqui, eu vi, amoleceu aqui em cima de tudo, a menina, push, nasceu…

Por que que cês acha?

A menina tava dano pra trás, tava dano pro ânus. A menina ia rasgá o períneo dela. A menina saiu da vagina e foi pro ânus, a cabecinha virou. Aí quando eu pus o cocci dela aqui em cima do joelho, a menina saiu daqui do ânus e veio direto pra vagina. 

Foram duas contração forte, a menina saiu, nasceu. 

Então, aí nasceu… foi prá lá, não chorou. O cordão tava passado no pescoço, mas o cordão não tava empatano dela nascê, não. 

A menina nasceu, minha mãe desmaiô e eu fiquei com minha mãe desmaiada. Pelejano com a menina, a menina de bruço, e eu com medo da minha mãe morrê, eu sabia que num tava morta.

E eu fiquei pelejano pra vê. Aí eu chamei as parteira, né?

– Vem cá, traz uma água aí. Mamãe tá pedino uma água. 

Elas viero.

– Uá… Minin nasceu?

– Menina. 

Agora de cá eu ficava pedino. Me dá um álcool, que eu sabia que mamãe num tinha morrido. E aí eu fui dano massaje nela, dano massaje, fui pulsano ela, não achava o pulso. Ela tem que batê o coração. Botei o dedo aqui, tava pulsano, devagarinho, falei: ela tá viva! Falei: agora eu vô agi, agora eu vô dá a ela as coisa.

Aí veio, elas trouxero pra mim a água, eu dei. Com essa água eu lavava o rosto dela assim, aí pedia cachaça canforada, trouxe, eu pus no nariz dela, sem sabê de nada na vida, gente. Botava no nariz dela assim, na mão. 

Já tava as pasta de algodão de cuidá do bebê, já tava tudo lá, eu só puxei, moiei o álcool e botava, aí com o algodão eu já colocava. Fui passano nela, no pulso dela, aí ela foi reagindo.

Reagiu, oiou pra mim assim, molinha, oiô, oiô. Falei: ao meno viva ela tá. E eu massage nela, massage, massage. A placenta saiu junto com a criança. Aí parece que ela queria dormi. Ela tava no meu colo, e eu botei ela aqui, e eu deixei.

– Pode dormi, mamãe. Na hora que ocê dormi, eu vô te dá um remédio pra hora que ocê acordá. Dormiu, dormiu, dormiu. E eu, pulsano ela, ela dormiu e eu com a mão aqui.

Aí eu chamei as muié, elas viero pra cortá o imbigo da menina. Aí eu fiquei olhano como que elas fazia. Elas impina o imbigo pra cima, e elas vem com garfo caldiado, vermelhinho. Aí elas queima, põe assim, põe assim, chega chera carne assada.

E a ôtra que era muito íntima da minha mãe, que era parteira, mas num era parteira formada, não. Formada era outra, a velhinha, papudinha, a quilombola. Danada que só ela, brigava comigo muito. Ela falô assim:

– Isso é coisa de Deus. É Deus que faz as pessoa fazê assim. Nós tudo tamu aqui é porque Deus manda. Mas, é porque ela tinha que aprendê hoje. De agora pra frente ela vai ser parteira pro resto da vida. 

Eu fiquei alegre quando ela falô assim. Fiquei toda fofa, toda orgulhosa. Igual uma criança quando ganha um presente, eu fiquei desse jeito.

Fiz 335 parto. Eu nunca dei pique em nenhuma muié, e nenhuma rompeu o períneo. Nenhuma. 

Florentina Pereira dos Santos, Dona Flor. Raizeira e Parteira do Moinho. Falecida em agosto de 2023, aos 85 anos de idade, em Alto Paraíso de Goiás.  Depoimento a Juliana Floriano Toledo Watson, registrado no livro O Partejar e a Farmacopeia de Dona Flor – História e ensinamentos de uma mestra quilombola.  Editora Avá, 2022. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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