O PARTEJAR DE DONA FLOR: SAÚDE INTEGRAL

O PARTEJAR DE DONA FLOR: SAÚDE INTEGRAL 

O PARTEJAR DE DONA FLOR: SAÚDE INTEGRAL 

A parteira cuida da saúde da comunidade, de todos os seres ter dependentes que foram ela: águas, terra, animais, plantas, mulheres, homens, pessoas com gêneros diversos, bebês, crianças, invisíveis, minerais.

Por Florentina Pereira Santos

A prevenção é não fazer as burrice que a gente faz hoje, ficar comendo óleo de soja. A pobreza da vida financeira traz a riqueza da saúde, porque a gente não tem dinheiro para comprar coisa industrial, a gente faz do mato e come, e aí tá com saúde. 

Agora cê tá cheia do dim-dim aí, comida pronta, marmitinha daqui marmitinha do acolá, comida de restaurante, comida que tá fazendo com 15 dias, aí põe lá pra esquentar, a gente come.

Antigamente nem fogão a gás a gente tinha. Antigamente não existia alface, a verdura que tinha era couve e mostarda. Cebolinha, coentro, salsinha, era esse o que tinha. Hoje tem repolho, hoje tem aquilo otru. 

Mas tudo tá envenenado, porque até o adubo do bovino eu não tô querendo usar na minha horta mais, por causa do veneno. A terra segura tudo e nela vai distribuindo. Minha opinião é que meió não cumê. Porque ocê vai cumê uma coisa que ofende a sua saúde…, não adianta ser bunito, ser gostoso, ser isso ou aquilo. Gostoso é aquilo que não faz mal pra gente.

A saúde já vem desde a geração das criança na barriga da mãe. Ó, cê tá com intenção de engravidá, então cê vai no médico, faz exame, leva o pai do seu filho, seu namorado, seu marido, seu quem fô, faz a consulta dele pra vê que tipo de doença que ele tem. 

Porque muitas vezes a muié não engravida, num é ela, é o home. O home pensa que eles num doece, mas doece, é carne e osso, todo mundo doece, né?

Então o primeiro caminho é esse, após isso a prevenção é a boca: não fumá, não bebê bebida alcoólica, não cumê essas coisas que muitos tão cumeno, açúcar cristal, esses enlatado, essas coisa que tá tudo empacotado. Procurá cumê duas coisa, ou três coisa, mas que tenha proteção.

HIGIENE

Higiene… quando eu falo pras muié assim:

– Ah, mas ceis num tem giene…

– Ah, mas eu tomo banho todo dia… escovo meus dente…

Giene num é isso não, giene é do sangue, é do espírito, cê teno boa giene do que cê come, seu sangue fica purificado.

Num fica falano bobage, falano palavrão, tudo isso atinge a gravidez, u bebê aprende. 

Nós aqui no Moinho, eu garanto que nós tamo bebeno uma água limpa, mas quem mora na cidade não tá.

Aquele cloro é um veneno… Eles diz que põe cloro pra limpá a água, eles põe cloro é pra matá o povo. Por que que tá o fígado da pessoa como tá? Gastrite dela como tá?

Por que a água da torneira endurece o cabelo da gente? É o cloro. As indústria hoje pra ganhar dinheiro tá matano quem não tem dinheiro…

PREVENÇÃO

Se nós qué tê saúde, nós qué tê saúde, nós tem que privini. Tem uma prevenção geral, em tudo, até no modo de nós falá com as pessoa. Nós não podemos agredi ninguém, discriminá ninguém. Porque tudo isso é doença. 

Se eu num doeço porque eu tô agredino ocê, mas ocê adoece porque recebeu de mim uma palavra que machucou ocê. Que a palavra vai direto no coração, e depois ela vai pra alma e fica doente pro resto da vida.

E o que ocê pensa de mim? Hã? Ocê vai ficá com ódio de mim, cê vai querê fazê uma vingança comigo…

A saúde nossa só permanece se nós respeitá as pessoa, amá (…). Será que a dona Flor ama assim? Eu tento… Cês acha que eu num tento amá? Eu tento. Mas eu num sei se eu tenho amô suficiente pra isso.

É como nós amá a natureza. Quando chegá num pé de árvore, derrubá ele sem necessidade nenhuma; derrubá um fruto que tá verde que nós num vamo cumê; jogá pedra num pássaro, quebrá a asa dele, deixá ele sofreno… Esse é o amor que muitos num têm, né?

Botá fogo, queima as erva tudo, queima os animais tudo… seca a água do rio. Vira aquele pó, aquela poluição horrorosa, adoece o povo. E aí agora? Ao invés deles cuidá dissaí, qué botá é veneno na água, né?

Qué tirá o esgoto de uma cidade do tamanho de Alto Paraíso (GO), pra colocá dentro do rio. E depois que colocá o esgoto dentro do rio, colocá o veneno pra matá os vírus que tá no esgoto. Cês acham que isso é uma coisa de gente?

Existe coisa mais limpa do que a água? O ar num é mais limpo do que a água não. Porque a água respira pro ar. Fervê adianta. Cê ferve a água de noite, coloca numa botija, num pote, numa coisa assim. E põe no sereno. Fica uma água purificada, cê pode usá ela pro que cê quisé. 

Água fervida é uma água abençoada…

O PARTEJAR DE DONA FLOR: SAÚDE INTEGRALFlorentina Pereira Santos – Dona Flor (1938-2023), em O Partejar e Farmacopeia de Dona Flor – História de ensinamentos de uma mestra quilombola, com Juliana Floriano Toledo Watson, organizadora. Editora Avá, 2022.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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