Natalina Soledad
Natalina Soledad, a mulher que havia criado o seu próprio nome, provocou o meu desejo de escuta, justamente pelo fato dela ter conseguido se autonomear.
Por Conceição Evaristo
Depois de petições e justificativas, ela conseguira se desfazer do nome anterior, aquele do batismo e do registro, para conceber um outro nome para si. Mudança aceita pelas autoridades do cartório da pequena cidade em que ela morava. E, a partir desse feito, Natalina Soledad começou a narração de sua história, para quem quisesse escutá-la. E eu, viciada em ouvir histórias alheias, não me contive quando soube da facilidade que me esperava. Digo, porém, que a história de Natalina Soledad, era muito maior e, como em outras, escolhi só alguns fatos, repito, elegi e registrei, aqui, somente estas passagens:
Natalina Soledad, tendo nascido mulher, a sétima, depois dos seis filhos homens, não foi bem recebida pelo pai e não encontrou acolhida no colo da mãe. O homem, garboso de sua masculinidade, que, a seu ver, ficava comprovada a cada filho homem nascido, ficou decepcionado quando lhe deram a notícia de que o seu sétimo rebento era uma menina. Como podia ser? — pensava ele — de sua rija vara só saía varão! Estaria falhando? Seria a idade? Não, não podia ser… Seu avô, pai de seu pai, mesmo com a idade avançada, na quinta mulher havia feito um menino homem. E todos os treze filhos do velho, nascidos dos casamentos anteriores, tinham nascido meninos homens. Seu pai, o mais velho dos treze, não havia seguido a mesma trajetória do velho Arlindo Silveira, tivera um único filho, ele. Mas também morrera cedo, antes dos vinte e, devido a esse fato, ele tinha mais lembranças do avô do que do pai. Fora criado pelo velho. Talvez, se Arlindo Silveira Filho tivesse vivido o mesmo tempo que o patriarca vivera, quem sabe não se igualaria ao outro, na façanha de conceber filhos machos, pensava Arlindo Silveira Neto. E ele, o neto mais velho, que tanto queria retomar a façanha do avô, vê agora um troço menina, que vinha ser sua filha. Traição de seu corpo? Ou, quem sabe, do corpo de sua mulher? Traição, traição de primeira! De seu corpo não podia ser, de sua rija semente jamais brotaria uma coisa menina. Sua mulher devia ter se metido com alguém e ali estava a prova. Uma menina! Só podia ser filha de outro! E, desde o nascimento da menina, Silveira Neto, que até então cumpria fielmente o seu
dever de marido, — segundo a visão dele —, deixou de se aproximar da mulher, tomou nojo do corpo desobediente dela, do corpo traidor de sua esposa. E Maria Anita Silveira, entre lamentos e desejos, mal amamentou a criança. Descuidou-se propositalmente dela e até concordou que o pai nomeasse a filha de Troçoléia Malvina Silveira. A criança só herdou o Silveira no sobrenome, porque a ausência desse indicador familiar poderia levantar a suspeita de que algo desonroso manchava a autoridade dele. E, como não queria passar por mais esse vexame, permitiu que a coisa menina, mal-vinda ao seio familiar, fizesse parte da prole dele, mas só no nome. Com o tempo, haveria de descobrir uma maneira de mantê-la longe, bem longe de casa. Nada de deixar alguma herança para ela. A coisa só pedia e merecia o esquecimento, a mãe também. A esposa, desassossegada diante do desprezo do marido, não percebia que, no crescimento da menina, uma expressão igual à de Arlindo Silveira Neto, marcava o rosto e o jeito da filha. Nem os meninos homens tinham tanta parecença com o pai. Ele, raivosamente, intuía.
A menina Silveira crescia a contragosto dos pais. Solitária, aprendera quase tudo por si mesma, desde o pentear dos cabelos até os mais difíceis exercícios de matemática, assim como se cuidar no período dos íntimos sangramentos. Dos cadernos e dos livros velhos desprezados pela prole masculina, que começava os estudos, ainda quando cada um precisava de auxílio para suspender a cueca, sozinha, ela recolhia suas lições. Silveirinha, como era chamada por alguns, de maneira autodidata, ia construindo seu aprendizado e ganhando uma sapiência incomum para a sua idade. Só mais tarde, depois de ter como cúmplice a voz de um de seus irmãos, obteve a concordância do pai e, consequentemente, a da mãe, para frequentar a escola. E foi então, na ambiência escolar, ao ser vítima dos deboches dos colegas, que a menina Silveira atinou com a carga de desprezo que o pai e a mãe lhe devotavam e que se traduzia no nome que lhe haviam imposto. Mas, para a surpresa da família, a menina Silveirinha se negava a responder a qualquer chamado, em que o seu nome, aquele de registro e de batismo, não fosse inteiramente dito. Na escola, em casa, na vizinhança, na igreja e em qualquer lugar que fosse, ela se desconhecia como Silveirinha. Enfaticamente, anunciava a todas as pessoas, grandes e pequenas, que o seu nome era: Troçoléia Malvina Silveira. Pronunciamento feito em todas as ocasiões, inclusive para os namorados que veio a ter mais tarde. Para o pai e para a mãe, tal atitude lhes permitiu, nas poucas vezes em que se dirigiam a
ela, pronunciarem a antiga raiva, o doloroso incômodo que o nascimento dela havia causado. Entretanto, a menina Silveira, ali por volta dos doze anos, momentos de sua entronização na rua, passou a ignorar a existência dos seus.
Cultivar um sentimento de desprezo pelos pais, na mesma proporção em que eles não lhe ofereciam nenhum abraço de resguardo, se tornou, para a menina Silveira, um modo simultâneo de ataque e defesa. Ostensivamente, ignorava a presença dos dois, não só na intimidade familiar, mas fora dela também. Dentro de casa, muitas vezes tateava o espaço como se estivesse no escuro, ou melhor, no escuro estava, pois andava de olhos fechados quando percebia qualquer proximidade dos dois. Não suportava vê-los. Recusava sentar-se à mesa, alimentava-se no quarto ou na cozinha e, como uma sombra, quase invisível, transitava em silêncio, de seu quarto ao banheiro e à cozinha, mesmo entre os seus irmãos. Da voz, da fala de seus familiares, não criou necessidade alguma. Bastavam-lhe os resumidos gestos que compunham a comunicação entre ela e a única doméstica da casa. O carinho morava na cozinha. Vinha de Margarida, o lenitivo para a dura existência da menina; mesmo assim, um dia tudo acabou. A moça, à custa de muito sofrimento, se viu obrigada a romper o elo fraterno que havia entre ela e Silverinha. Era impossível continuar trabalhando em uma casa, onde o dono, a dona e seus filhos, aos berros, como se surda ela fosse, ditavam todas as ordens, com gestos de quem brame um chicote no ar. E receber um salário minguado que não compensava nenhum trabalho e, muito menos, qualquer sofrimento. Sentia pela menina e a solidão de gente grande que ela experimentava desde pequenina, desde sempre. Silveirinha, mesmo percebendo o acolhimento da outra moça, que chegou mais tarde para trabalhar no lugar de Margarida, continuou acomodada em sua solidão. Tinha um só propósito. Um grande propósito. Inventar para si outro nome. E, para criar outro nome, para se rebatizar, antes era preciso esgotar, acabar, triturar, esfarinhar aquele que lhe haviam imposto. Pacientemente, a menina Silveirinha esperou. A moça Silveirinha esperou. A mulher Silveirinha esperou. E, nas diversas andanças do tempo sobre o corpo dela, muitos acontecimentos. Os irmãos cresceram mais e mais. Sobrinhas e sobrinhos chegaram. Pai e mãe envelheceram. O desprezo recíproco, entre ela e os seus, continuou e respingou sobre a prole infantil que se formava. Tia esquisita aquela, — diziam os sobrinhos —, desde o nome. Tia que pouco saía de seu quarto. Não tão jovem, não tão velha. Quantos anos teria a Tia
Troçoléia Malvina Silveira? Que nome! Que nome! Tão esquisita essa tia! Talvez por isso o vô e a vó lhe tivessem dado esse nome… E as crianças cresciam rejeitando a tia, que também rejeitava os sobrinhos.
Silveirinha, já adulta, depois de alguns pouquíssimos amores, — aliás, nem amores eram, e sim raríssimos encontros, sem graça alguma, com homens de belos nomes —, desistiu também do amor a dois. Dos amores múltiplos de família, ela não experimentava lembrança alguma. Pouco se importava, só o único desejo a perseguia: o de se rebatizar, o de se autonomear. Em suas leituras, das mais diversas, entendia que o direito que ela havia desejado desde criança, na prática, existia. Aos dezoito anos — dizia para ela mesma — toda pessoa, vítima de seu próprio nome, pode trocá-lo. Mas Silverinha, somente aos trinta, decidiu. Nem ela sabia explicar por que aguardou tanto tempo. Talvez — penso eu —, apesar de tudo, por um inexplicável respeito aos pais. Sim, pois só depois que os dois, vítimas de um desastre de carro, morreram, foi que Silveirinha tomou a decisão. Rumou ao cartório para se despir do nome e da condição antiga. Abdicou da parte da herança que lhe caberia. O pai resolvera não lhe deserdar e deixou- lhe algumas casinhas que lhe forneceriam rendas para viver. Rejeitou também a incorporação do sobrenome familiar — Silveira — ao seu novo nome. E, sonoramente, quando o escrivão lhe perguntou qual nome adotaria, se seria mesmo aquele que aparecia escrito na petição de troca, ela respondeu feliz e com veemência na voz e no gesto: Natalina Soledad. O tabelião, não crendo, tentou argumentar que aquele nome destoava da denominação familiar dos Silveiras e que era meio esquisito também. Por que Natalina Soledad? Por quê?
Natalina Soledad — nome, o qual me chamo — repetiu a mulher que escolhera o seu próprio nome.
Fonte: In EVARISTO, Conceição (2011). Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala. Capa: Reprodução/TNM
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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