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O que podemos fazer sobre nossa cultura de violência?

O QUE PODEMOS FAZER SOBRE NOSSA CULTURA DE VIOLÊNCIA?

O que podemos fazer sobre nossa de ?

Ser Brasileiro pode ser às vezes um exercício de autodescobrimento. No jornal, vendo os protestos no mundo árabe, tem-se claramente a sensação que, apesar das inúmeras dificuldades que aqueles povos enfrentam, eles sabem fundamentalmente quem são. Há um grande rio entre aqueles que sabem o que querem, e aqueles que sabem o que são.

Ser brasileiro é diferente. Os valores de um brasileiro não são tão claros. Talvez mérito de um país menos ideológico, menos impositivo. Às vezes é bom saber que nascemos em um país que não se empenha tanto em lhe martelar cérebro adentro crenças desde a .

Por isso geralmente o brasileiro quando chega numa certa idade acaba parando, pelo menos por um instante, para decidir: no que eu acredito? Isso é um luxo que poucas outras sociedades no mundo oferecem a seus integrantes. As sociedades têm crenças fortíssimas e criam normas para garantir que todos os seus membros vão continuar defendendo os mesmos ideais, geração após geração.

No parece que a coletividade decidiu relaxar essas normas e dar a cada um espaço para respirar e decidir que ritmo vai dar à sua própria vida. Isso dá uma chance a mais para a felicidade, para a ideia de ser alguém absoluto. Cada um é mais que a medida de sua adequação a ideais que nos bombardeiam por todos os lados. Ou isso tudo é ilusão minha, e estou sendo otimista demais sobre o que é ser brasileiro.

Somos machistas, inclusive muitas . Somos ignorantes e racistas. Somos xenofóbicos e homofóbicos. Somos apáticos, céticos e cínicos, especialmente com o nosso próprio potencial como indivíduos, como político e como nação.

Há algum tento reconciliar essas duas constatações. Morar no exterior me deixou claro como a nossa cultura é menos impositiva que muitas outras, e que o brasileiro é um pouco mais feliz por isso. Você não conheceu a ansiedade até ver a ansiedade num anglo-saxão. Você não conhece a pressão por resultados até ouvir o desabafo de um asiático.

Comparada com outras culturas, a nossa não parece se empenhar tanto em pressionar os seus integrantes em direção a um certo caminho. Ser brasileiro é resolver quem você é. Mas paradoxalmente continuamos perpetuando crenças que excluem e violentam homossexuais, negros, asiáticos, mulheres e deficientes.

Os protestos que vêm acontecendo são a ilustração mais clara desse paradoxo. O país inteiro, insatisfeito, vai às ruas pedindo essencialmente a mesma coisa: menos corrupção e melhores serviços públicos essenciais. O que o país não esperava é que, ao sair às ruas, ia ver também quem ele mesmo é, com todas as suas feiúras.

Não são raros relatos como o da feminista que esbarrou no apoiador do Marco Feliciano no protesto. Ou do direitista que acha que a polícia deve descer o cacete em manifestante (citando quase letra por letra a declaração de um presidente da primeira república, o que sugere que parte do nosso país ainda vive no começo do século XX), para descobrir, horas depois, seu amigo agredido.

Quando o país vai às ruas, experimenta o desagradável efeito colateral de perceber o que realmente é. As ilusões caem, o patriotismo bambeia. Somos forçados a admitir a nós mesmos que existe realmente quem apoie o Feliciano, e não são poucos. Existe quem defenda Donadon, Calheiros. Tem quem concorde com o Bolsonaro.

E por mais que me doa admitir que alguém como o Marco Feliciano não só seja brasileiro, mas que me representa, cheguei a constatação que o problema não é ele, nem nenhum dos outros que mencionei.

O que permite que seres medievais como esses continuem nos representando não é simplesmente o sistema e seus incentivos macabros. Não: o sistema tem amplos mecanismos para que se remova um líder inadequado, por mais imperfeitos que estes mecanismos sejam.

A razão de toda eleição não surpreender a ninguém é, no fim das contas, por que nós como um país apoiamos não só líderes ignorantes e inadequados, mas também os valores abomináveis que eles representam. Não são eles, somos nós.

Esse apoio manifesta-se mais claramente, a meu ver, na amplitude da violência policial contra manifestantes, e na impunidade dos policiais criminosos que são flagrados, denunciados e… protegidos. A violência não advém simplesmente do treinamento inadequado ou incompleto, seria ingenuidade acreditar nisso.

Não, apesar dos nossos policiais, especialmente as forças especiais, serem assassinos treinados procurando por uma desculpa para usar o brinquedo, não é simples assim a razão dos ataques a manifestantes. Apesar do BOPE executar cotidianamente moradores das favelas, a culpa não é exclusivamente deles.

A violência é cultural, é uma reação à evolução natural das crenças de uma sociedade. A evolução é em direção à inclusão e à participação mais igual de todos os grupos de interesse do Brasil, ou seja, a uma minimamente digna do nome. Aqueles que sentem-se ameaçados por esse processo, desde o século 19 recorrem sempre à mesma ferramenta: a violência.

Não é suficiente tomar providências contra os atos de violência e seus autores. É necessário combater as causas culturais dessa violência. É importante entender que o que leva os policiais à agressão não são necessariamente ordens de superiores. Muitas vezes é uma raiva há anos reprimida e cultivada, uma intolerância à desobediência aprendida desde cedo — cedo demais.

É necessário um esforço tanto do coletivo quanto dos indivíduos para desfazer crenças profundamente enraizadas em nossa cultura, que compelem policiais a punir e reprimir violentamente aquilo que é um dos pilares centrais de toda democracia: a liberdade de se opor a, ou até derrubar, um governo inadequado.

Por outro lado, não é de todo mau o uso da violência. Não pretendo nem por um segundo fazer pouco do sofrimento dos que foram agredidos, mas a violência tem um ponto bom: provoca mudança. O Brasil nunca se importou com a violência praticada contra pobres, coisa que acontece desde que o país existe. Agora jogue gás no olho de um ator da globo, quebre a costela de um filho de político e a coisa anda.

O Brasil é um clássico exemplo da imagem que o antropólogo Loic Wacquant cria de um Estado Centauro, que trata a metade de cima como humano e a metade de baixo como cavalo. O maior problema desse tipo de organização é que é bastante estável. A situação é boa o suficiente para as pessoas que têm poder de influência e, desde que a coisa não esteja insuportável para os mais pobres, a tendência é continuar como está.

Mas esse equilíbrio desaparece quando a classe média começa a ser o alvo da violência. Os ataques contra manifestantes foram divulgados em larga escala pelas redes sociais, mas não o suficiente. Num mundo em que Bashar Al-Assad existe, as chances das câmeras da CNN prestarem atenção na PM do Rio são baixas.

Divulgar a violência não basta. O problema não é a PM, é quem a apoie. O problema não é quem está no Congresso, é quem os apoia. Sem a base de apoio, não há voto secreto que lhes proteja.

O valor da violência no contexto atual é que evidencia o absurdo das crenças mais enraizadas da nossa cultura. A violência é a ponta do iceberg, enquanto o seu corpo submerso representa as profundas desigualdades e injustiças que permitimos existir em nosso país.

Não permitamos mais, não concedamos tão facilmente assim o nosso apoio apático a um conjunto de valores e crenças tão retrógradas. É claro que acabar com a base de apoio não vai acontecer, não completamente. Mas talvez seja hora de aproveitar a maleabilidade do que é ser brasileiro, e se mudar um pouco mais.

Talvez seja a hora de insistir um pouco mais no assunto e deixar claro a um homofóbico que comentários preconceituosos não serão tolerados. Talvez seja hora de parar de preservar a conversa agradável do bar e enfrentar um pouco mais as pessoas que, quase involuntariamente, perpetuam crenças que contradizem diretamente os princípios básicos da dignidade humana.

Uma dúvida a mais, uma certeza a menos, e um apoiador a menos dos valores e líderes que nos mantêm presos ao passado, um passado que deve ser superado.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

revista 119

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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