O quero-quero é pássaro barulhento, fofoqueiro, mas é do bem. De acordo com o poeta: É pássaro mais de amar que de trabalhar.
Natureza será que preparou o quero-quero para o mister de avisar? No meio-dia, se você estiver fazendo sesta completa, ele interrompe. Se está o vaqueiro armando laço por perto, em lugar despróprio, ele bronca. Se está o menino caçando inseto no brejo, ele grita naquele som arranhado que tem parte com arara. Defende-se como touro. E faz denúncias como um senador romano.
Por Manoel de Barros
Quero-quero tem uma vida obedecida, contudo. Ele cumpre Jesus. Cada dia com sua tarefa. Tempo de comer é tempo de comer. Tempo de criar, de criar.
É pássaro mais de amar que de trabalhar.
De forma que não sobra ócio ao quero-quero para arrumar o ninho. Que faz em beira de estrada, em parcas depressões de terreno, e mesmo aproveitando sulcos deixados por cascos de animal.
Gosta de aproveitar os sulcos da natureza e da vida. Assim, nesses recalques, se estabelece o quero-quero, já de oveira plena, depois de amar pelos brejos perdida e avoadoramente.
E porque muito amou e se ganhou de amar desperdiçadamente, seu lar não construiu. E vai conceber no chão limpo. No limpo das campinas. Num pedaço de trampa enluaçada. Ou num aguaçal de estrelas.
Em tempo de namoro, quero-quero é boêmio. Não aprecia galho de árvore para o idílio. Só conversa no chão. No chão e no largo. Qualquer depressãozinha é cama. Nem varre o lugar para o amor. Faz que nem boliviana. Que se jogue a cama na rua na hora do prazer, para que todos vejam e todos participem. Pra que todos escutem.
Não usa o silêncio como arte.
Quero-quero no amor é desbocado. Passarinho de intimidades descobertas. Tem uma filosofia nua, de vida muito desabotoada e livre.
Depois de achado o ninho e posto o ovo porém, vira um guerreiro o quero-quero. Se escuta passo de gente se espeta em guarda. Tem parenteza com sentinela. Investe de esporão sobre os passantes. E avisa os semoventes de redores.
Disse que pula bala. Sei que ninguém o desfolha. Tem misca de carrapato em sua carne exígua. Debaixo da asa guarda este ocarino redoleiro pra de-comer dos filhotes.
De olhos ardidos, as finas botas vermelhas, não pode ver ninguém perto do ninho, que se arrepia e enfeza, como um ferrabrás.
Passarinho de topete na nuca, esse!
Manoel de Barros – Escritor pantaneiro. Em Livro das Pré-Coisas. Editora Record, 1997.