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OS INDÍGENAS EM OUTROS CARNAVAIS

OS INDÍGENAS EM OUTROS CARNAVAIS

Na madrugada da segunda (12), a flecha disparada pelos Yanomami – povo da floresta – atravessa o sambódromo no ritmo da Acadêmicos do Salgueiro, em busca de um alvo: a construção de um “Brasil cocar”. A flechada será aqui discutida depois do desfile das campeãs no sábado (17). Por enquanto, convém refletir sobre o significado da participação de indígenas em outros carnavais com destaque para Porto da Pedra (2023), Unidos da Tijuca (2022) e Imperatriz Leopoldinense (2017).

Por Redação/Taquiprati

Porto da Pedra cantou A invenção da Amazônia e introduziu o sagrado na passarela com o canto de esperança em língua Katukina do Bruno Pereira: Wahanararai Wahanararai. A Unidos da Tijuca contou a lenda do guaraná do povo Saterê-Mawé – Waranã, a Reexistência Vermelha. E a Imperatriz Leopoldinense trouxe “Xingu, o clamor da floresta” com Raoni celebrando os saberes das civilizações indígenas, “a primeira semente da alma brasileira”.

Para curtir melhor o desfile da Acadêmicos do Salgueiro, que conta com a presença de Davi Yanomami, pode ser oportuno discutir o caráter educativo das escolas de samba no carnaval e a forma como os enredos são elaborados, com maior ou menor precisão.

O currículo oficial da rede de ensino incluiu de forma obrigatória a temática “História e Cultura Afro-Brasileira e indígena” com a Lei nº 11.645 assinada pelo então presidente Lula em 10 de março de 2008. Isso vale para as escolas em todos os níveis de ensino. Embora as escolas de samba não sejam “obrigadas”, algumas delas incluíram a temática em seus enredos, conscientes de que o sambódromo é um lugar privilegiado de educação, o que não é uma novidade.

O livródomo

– Ao longo da história do Brasil, o carnaval foi uma festa altamente politizada. Já na década de 1880, trouxe a campanha abolicionista para as ruas, com as grandes sociedades do Rio de Janeiro desfilando e arrecadando dinheiro para fazer fundos de alforria – escreveu o historiador Luiz Antônio Simas lembrando que, muito antes de entrar no livro didático, o Quilombo dos Palmares passou pela avenida no desfile do Salgueiro de 1960.

Com o carnaval se aprende a ler o mundo com determinado olhar. Melhor do que qualquer aparelho ideológico, as escolas de samba fazem a crônica do Brasil. Por isso, os regimes autoritários tentaram interferir nos enredos, impondo seus valores de forma atabalhoada.  

A ditadura Vargas e a ditadura empresarial-militar de 1964 distribuíram verbas às agremiações para exaltarem os “heróis oficiais” num palavrório sem pé nem cabeça. No governo Medici uma escola chegou a fazer a apologia do ensino pago na universidade pública. Os enredos desprezavam a história e a realidade, o que levou o humorista Stanislaw Ponte Preta a criar o “samba do crioulo doido”, no qual “Tiradentes queria ser dono do mundo e elegeu-se D. Pedro II”.  

Depois, com os ventos democráticos, os enredos passaram a ser filhos legítimos do casamento da sabedoria popular com o saber acadêmico, elaborados com muita pesquisa e muito cuidado. Os carnavalescos fazem a síntese intercultural com imagens, performances, fantasias, alegorias, que informam, conscientizam e subvertem a memória oficial, seguindo a ideia de Darcy Ribeiro, o idealizador do Sambódromo, que se referiu às duas asas do pássaro da cultura: a academia e o saber popular. Se bater apenas uma asa, o pássaro não levanta voo.

Muitas escolas de samba, com suas aulas magistrais, preenchem uma lacuna, já que o sistema escolar é frequentemente omisso em algumas questões, invisibilizam as matrizes indígenas e de origem africana ou, quando mencionadas, reforçam preconceitos. Agora, o conhecimento acadêmico, fertilizado e transfigurado pela cultura popular, desfila no carnaval em todo seu esplendor ao alcance dos não iniciados.

Trabalho de campo

Foi o que aconteceu com a Imperatriz Leopoldinense, em 2017. O carnavalesco Cahê Rodrigues se deslocou ao Xingu onde conviveu com os indígenas, observou o cotidiano e com eles concebeu o enredo. Viu a área contaminada por agrotóxico, causador de câncer responsável pela morte de muita gente de lá, viu os rios secando e a mata morrendo.

– Voltei de lá com outra cabeça – disse.

Da Antropologia, a escola de samba tomou emprestado o trabalho de campo como forma de entender o outro, o diferente. Buscou na Museologia a curadoria compartilhada com os povos do Xingu. Recorreu à História para abordar acontecimentos com o conceito de longa duração de Fernand Braudel, abandonando o fatual, os nomes de heróis fajutos e a sucessão de datas inúteis.

Com essa bagagem, o enredo levou para a passarela do samba a defesa da natureza agredida, a beleza e exuberância das cores da floresta e de rios limpos e piscosos, as pinturas corporais, a arte indígena, os instrumentos musicais – as flautas e os maracás, a liberdade e a memória sagrada. A letra foi tema de aulas em muitas escolas do Rio. Na escola das minhas netas, vi o encantamento das crianças c0m os saberes das etnias que vivem no Xingu.

O conhecimento acadêmico, fertilizado e transfigurado pela cultura popular, desfilou no carnaval em todo seu esplendor, ao alcance dos não iniciados. A Escola de Samba, sem qualquer pedantismo, divulgou as fontes bibliográficas de seu samba-enredo. No entanto, os comentaristas da TV nem sempre estão preparados para ajudar o público, desconhecem quase sempre a literatura e os ensaios de história e antropologia sobre o tema e às vezes atrapalham.

Brasil Cocar

Cheio de boa intenção, a Unidos da Tijuca, com seu enredo sobre o povo do guaraná, defendeu a demarcação das terras e a resistência indígena, mas afrontou as crenças ameríndias, quando exibiu Jurupari como “a força do mal, que vive na escuridão possuído por energias malignas semeadoras do ódio” e o fez desfilar no carro “A maldade de Jurupari avança sobre a floresta”.

Acontece que Jurupari, herói civilizador, legislador, criador de normas e usos transmitidos oralmente, é uma das figuras míticas mais representativas das culturas ameríndias. Quem o demonizou foram os missionários. O enredo seria outro se os carnavalescos tivessem ouvido os indígenas do Rio Negro, especialmente Edilson Melgueiro, que pertence justamente ao clã do Jurupari e se doutorou em linguística com a tese O Nheengatu de Stradelli aos dias atuais.

No desfile da Acadêmicos do Salgueiro será possível checar em que medida esse diálogo de saberes aconteceu e se seu enredo vai sair do sambódromo para a rede oficial de ensino como uma ferramenta a ser usada pelo professor para pautar e, se preciso, questionar o livro didático. O currículo escolar vai sambar e permitir um conhecimento da cultura e da resistência Yanomami, contribuindo para a construção de um “Brasil cocar”.

Fonte: Taquiprati.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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