Em entrevista à Revista Focus Brasil, o jornalista Jamil Chade comenta as últimas movimentações no tabuleiro da geopolítica no avanço para o reconhecimento e reconstrução da Palestina. Para o correspondente, o reconhecimento não é somente da Palestina como soberana, mas de Israel como um invasor, num ponto de retorno histórico a 1967, quando teve início a Guerra dos Seis Dias e a ampliação do avanço sobre terras palestinas por Israel. Na conversa, ainda o avanço da extrema-direita de forma cooperada. 

Por Fernanda Otero e Guto Alves/ Revista Focus Brasil 

Recentemente, a história do território palestino ganhou novos contornos. Países que sempre negaram o reconhecimento da Palestina no Oriente Médio e condenaram o povo palestino a uma clandestinidade cidadã, submissa ao Estado de Israel, começaram a se movimentar pelo reconhecimento do país.

Hoje, três quartos dos países do mundo reconhecem o Estado palestino que foi proclamado pelos líderes no exílio há mais de 35 anos. É o caso de Espanha, Irlanda e Noruega, que reconheceram formalmente o estado palestino como estado soberano.

Esse reconhecimento tardio acontece na mesma semana em que Israel deu ao povo palestino – e ao mundo – mais uma evidência de seus crimes de Guerra: o ataque a um campo de refugiados localizado em Rafah, na Faixa de Gaza.

O ataque israelense a Rafah carbonizou crianças, matou 45 palestinos e tem gerado indignação internacional. Em rede oficial, a ONU registrou, em inglês, que “este horror tem que parar” e afirmou, em nota, que “não há mais lugar seguro em Gaza”.

O reconhecimento eleva para 145 o número de países que reconhecem o Estado palestino, de um total de 193 membros das Nações Unidas. Em 9 de maio, o governo esloveno adotou um decreto para o reconhecimento deste Estado e o Parlamento deverá se pronunciar em 13 de junho.

O presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou em fevereiro que o reconhecimento de um Estado palestino “deixou de ser um tabu”. Já o ministro francês das Relações Exteriores, Stéphane Séjourné, reiterou nesta terça-feira que considera que esta decisão deve ocorrer “no momento imediato”.

O reconhecimento do invasor

Para Jamil Chade, jornalista brasileiro que vive em Genebra e cobre relações diplomáticas e política internacional para o UOL, o reconhecimento, ainda que tardio, vem acompanhado de um importante componente: o reconhecimento não só do estado, mas do invasor. “Quando você reconhece o Estado da Palestina nas fronteiras de 1967, porque é isso que a declaração faz, você está reconhecendo o Estado palestino como ele era em 1967”, reflete o repórter, que conversou com a reportagem da Focus por videoconferência.

Outro aspecto abordado é o que o reconhecimento significa para a reconstrução da Palestina, que está destruída pelos ataques israelenses. “Vai reconhecer o quê, se está tudo destruído? Bom, vai reconhecer que tem um invasor. Essa é uma parte fundamental dessa história”, conclui.

Os novos passos no xadrez da geopolítica sinalizam uma mudança de caminhos na Europa, que agora tem que lidar com o avanço da extrema-direita. “As pessoas estão abrindo os olhos. ‘Opa, precisamos frear isso aqui’. De uma forma muito impressionante, esses dois mapas convergem em apoio à extrema-direita e a Israel”, afirma Jamil.

Leia trechos da entrevista a seguir:

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– Uma questão central do momento é a decisão de países europeus que reconheceram o Estado da Palestina, mas o que resta desta Palestina atacada? O reconhecimento do Estado palestino, que está quase todo dizimado e destruído, vem acompanhado de discussões sobre reconstrução e apoio? O que sobrou da Palestina para ser reconhecido? Isso está em pauta?

– Tem alguns aspectos que eu queria falar, e essa é uma boa pergunta, inclusive, para começar. O reconhecimento está atrasado em 70 anos. Não é que ele esteja atrasado em relação ao 7 de outubro. Não, são 70 anos de atraso nesse reconhecimento. Precisamos começar por aí a história. Não adianta tentar argumentar de outra forma.

Agora, já que é essa a situação, o que tem para ser reconhecido? Em primeiro lugar, acho que o fundamental não é só reconhecer o que sobrou, como você colocou, de uma forma muito correta. Mas, veja como é interessante: isso tem tido um grande impacto na diplomacia. Quando você reconhece o Estado da Palestina nas fronteiras de 1967, porque é isso que a declaração faz, você está reconhecendo o Estado palestino como ele era em 1967.

O que quer dizer isso? Que, ao mesmo tempo que você reconhece a Palestina como Estado, você reconhece Israel como um invasor. Porque, até agora, você poderia dizer que não é um invasor. São terras disputadas. Tem uma situação fluida. O que os europeus começam a fazer agora é dizer, não, calma aí, isso aqui tinha dono.

E vocês são os ocupantes, os invasores. Isso é fundamental na discussão legal, inclusive. Vai reconhecer o quê, se está tudo destruído? Bom, vai reconhecer que tem um invasor. Essa é uma parte fundamental dessa história. Por isso que os israelenses ficam também tão irritados com essa história. Porque eles passam a ser um agente legal.

Antes, bom, estamos ali, vamos negociar, vamos ver como é que vai fazer isso… Agora, para um número crescente de países, e pela primeira vez de uma forma contundente, também na União Europeia, Israel é colocado como um invasor. Isso muda a história.

– Muda a história e muda o xadrez da geopolítica…

– Exatamente. Esse é um ponto fundamental para entender. O segundo ponto tem a ver com o que você disse: qual é a situação hoje da Palestina? Em muitos lugares, ela está totalmente desmembrada, completamente destruída e enfraquecida.

O que fazem os israelenses, entre outras coisas? Controlam o fluxo de dinheiro para essas localidades e até mesmo o pagamento de impostos em algumas dessas cidades, não em Gaza, mas na Cisjordânia. Então, quando você reconhece um Estado soberano, falando em termos super capitalistas, quem fica com o dinheiro? Quem fica com o dinheiro dos impostos?

Porque hoje, mesmo a autoridade palestina precisa da boa vontade, ou melhor, de um acordo com Israel para repassar o dinheiro que é dos impostos, olha que loucura. Quando você concede um reconhecimento desse tipo, você também diz que quem deve gerir os recursos daquele país é a autoridade daquele país, ponto final.

Então, tem esse aspecto também. Se tem um plano de reconstrução, tem vários planos. Há o plano da ONU, por exemplo, do Pnud, que foi apresentado há um mês. Esse talvez seja o plano mais bem elaborado devido a tudo o que aconteceu nos últimos sete meses.

O plano do Pnud é criar um fundo internacional que seria utilizado para a reconstrução de Gaza e, claro, também de partes da Cisjordânia. Agora, esse fundo só faz sentido se a Palestina for um Estado soberano. Porque volta àquela outra discussão: você está reconstruindo o quê e para quem? Portanto, esse aspecto também é importante.

– E você vê essa discussão avançando na ONU nos próximos meses?

– Prefiro te contar, como repórter, o que está acontecendo. O que tem acontecido é que a situação em Gaza é tão dramática que, ao mesmo tempo, está gerando uma mobilização inédita, pelo menos nos últimos 25 anos. Estou aqui há 25 anos e nunca tinha visto essa mobilização pelo reconhecimento do Estado palestino dessa forma.

Então, o que é o Estado palestino? Além de classificar Israel como um invasor e exercer controle sobre a arrecadação de impostos e a ajuda internacional, também significa uma blindagem internacional em relação, claro, ao invasor. Então, o que fizeram os palestinos? Reconheceram que não têm como frear essa invasão ou competir com o poderio militar israelense. O que podem fazer, no campo diplomático, é “esticar a corda”.

E o que é “esticar a corda”? Forçar um reconhecimento do Estado palestino. Assim, os palestinos e os árabes, ao perceberem a iminência de uma destruição brutal, recolocaram esse tema na mesa de negociações e tentaram empurrá-lo ao máximo. Eles empurraram tanto que foi muito mais do que imaginavam e quase conseguiram.

Bateu na trave, faltando apenas um voto, o dos americanos, no Conselho de Segurança. Um veto americano é decisivo, mas o Reino Unido, outro membro permanente do Conselho com poder de veto, optou pela abstenção, o que é significativo, dado que o Reino Unido é um aliado dos EUA e de Israel.

Outras abstenções, como a da Suíça, também foram importantes. Além disso, o voto favorável da França foi bastante significativo. Empurraram muito, foi muito longe, muito mais, eu diria, longe do que eles imaginavam e bateu na trave, porque só teve um voto, no caso dos americanos, vetando no Conselho de Segurança. Um dos americanos é tudo, é tudo, mas olha, o Reino Unido, que é membro do Conselho de Segurança permanente, tem poder de veto, optou pela abstenção. Foi significativo que você tenha o Reino Unido, um aliado americano, um aliado de Israel, optando pela abstenção.

Outras abstenções também foram importantes, a da Suíça, por exemplo, também foi importante. E o voto favorável da França, que também é significativo. Os palestinos aproveitaram esse momento para avançar o máximo possível. Será uma questão de semanas ou meses? Claro que não. Por quê? Porque o veto americano não vai mudar a curto ou médio prazo, o veto americano não vai mudar nesse sentido.

– Você vê relação entre o reconhecimento da Palestina como um realinhamento de forças em resposta ao avanço da extrema-direita no Ocidente? Com o Reino Unido se abstendo, parece haver uma resposta forçada ao extremismo. Aqui no Brasil, por exemplo, estamos relembrando os 60 anos do golpe, enquanto lidamos com o impacto recente da extrema-direita que esteve no poder com Bolsonaro na presidência. Esse realinhamento das forças é perceptível para você?

– As pessoas estão abrindo os olhos. Opa, precisamos frear isso aqui. De uma forma muito impressionante, esses dois mapas convergem em apoio à extrema-direita e a Israel. Não pelo apoio a Israel ao povo judeu, não é por isso, no caso dos americanos, talvez seja, mas não é essa a principal razão.

A questão é que Netanyahu é uma peça fundamental na extrema-direita mundial. E dos membros do seu governo, ele, imagina só, é até o mais moderado. Há outros membros do seu governo que são ainda mais extremos. No governo dele, há figuras como Felipe Martins e Damares Alves. Existem pessoas que são ainda mais radicais que ele. Ele é como o General Mourão. Pode parecer um absurdo, mas a ideia é que ele já foi primeiro-ministro antes, de uma forma muito mais, eu diria, capaz de dialogar.

Hoje, ele governa com o apoio não apenas da extrema-direita, mas da ultra-extrema-direita, o que tem suas implicações. Esses países, por exemplo, que chegaram na… eles foram para a Assembleia Geral da ONU e votaram na resolução de reconhecimento da Palestina, os que votaram contra a resolução, além dos americanos, que já era previsto e vai ser sempre assim, democratas ou não, a gente vai ter sempre uma relação dessa, mas nós tivemos Hungria e Argentina.

Foram só nove países que votaram contra. E desses nove países, você tinha a Argentina do Milei e a Hungria de Viktor Orbán. Agora, insisto, não é pela proteção ao povo judeu, pelo entendimento de que aquela terra primeiro era dos judeus ou não, não é nada disso. Não é nada disso. Esses países, por exemplo, que chegaram na Assembleia Geral da ONU, votaram na resolução de reconhecimento da Palestina.

Além dos Estados Unidos, que sempre se posicionaram contra democratas ou não, também tivemos Hungria e Argentina votando contra. Foram apenas nove países que votaram contra. E desses nove países, tinha a Argentina do Javier Milei e a Hungria de Viktor Orbán. Não é pela proteção do povo judeu ou de reconhecer que aquela terra era originalmente dos judeus, nada disso. Não se trata de nada disso.

– Diante das próximas eleições em 7 de junho para o parlamento, com o governo britânico convocando eleições para o início de julho, como você avalia esse novo cenário na Europa, com as previsões apontando para a formação de um novo parlamento de direita.

– Sim, os dados mostram que as pesquisas da semana passada, em 27 países europeus, apontaram a extrema-direita como líder na campanha eleitoral para o parlamento europeu nove desses países. Em mais cinco, a extrema-direita ficou em segundo lugar. Isso é impactante.

Essa eleição é complicada porque não mobiliza tanto, eu sempre brinco que a eleição para o parlamento europeu é mais como um feriado do que uma eleição, com uma taxa de participação muito baixa. A perspectiva é que a extrema-direita saia fortalecida dessa eleição. E aí tem uma lógica nesse contexto de 2024 que é horrível, absolutamente dramático.

O que eu ouvi deles nessa última cúpula da extrema direita mundial chamada CPAC – Conferência de Ação Política Conservadora, em Budapeste, realizada há duas semanas, é o seguinte: a ideia é de primeiro vencer, ou pelo menos se fortalecer muito no parlamento europeu, e depois de você ter se fortalecido no parlamento europeu, eventualmente vencer a eleição nos Estados Unidos. E aí, olha só, criar um arco da extrema direita entre Estados Unidos e Europa.

Isso já pensando em 2025, em 2026, com a eleição do Emmanuel Macron na França, com a extrema direita também despontando como líder, e na Itália, com a Giorgia Meloni já no poder. E teremos eleições no Brasil. Então, aquela ideia que alguns de nós talvez tivemos, eu não culpo, porque a gente teve direito também de celebrar. Quando o Bolsonaro perde a eleição, a página é virada? Para eles não é. Para eles não existe essa página virada. Essa mobilização continua e eles voltam com uma… Voltam não, acho que nem essa palavra é correta.

A mobilização continua porque o objetivo é de médio a longo prazo. Não é uma relação oportunística. Vamos adotar essa ideologia para vencer a próxima eleição. É algo muito consolidado, com muito dinheiro, com uma estratégia muito clara. Então, não é, não vai desaparecer. No Brasil não desapareceu e não vai desaparecer só porque perderam uma eleição.

A ideia de que, talvez, alguns de nós tivemos, não é de se culpar, pois também tivemos o direito de celebrar, era que quando Bolsonaro perdesse a eleição, seria uma página virada. No entanto, para eles não é assim, não existe essa página virada. A mobilização continua e não é uma questão de voltarem, porque seria como se tivessem saído.

A mobilização continua porque o objetivo deles é de médio a longo prazo. Não se trata de uma abordagem oportunista de adotar uma ideologia para vencer a próxima eleição. É algo muito bem estabelecido, com um apoio financeiro significativo e uma estratégia bem definida. Portanto, não vai desaparecer. No Brasil, essa ideologia não desapareceu e não vai desaparecer apenas porque perderam uma eleição.

– É interessante você falar isso porque muita gente defendia que era pura ordem do discurso. O uso do discurso como uma forma de arregimentar eleitores. E não é.

– É prática, é prática. Porque tem alguns aspectos que, acho que convivendo e olhando muito para esses movimentos em vários países ao mesmo tempo, tem algumas coisas que eu, pelo menos, comecei a descobrir. A primeira delas é de que eles têm certeza de que estão do lado certo da história. É uma coisa meio maluca, mas tem até uma colega que escrevi com ela, a Juliana Monteiro, que diz que eles se apresentam como revolucionários. São eles que estão trazendo a revolução.

Eu falo, não, calma aí, vocês são ultra conservadores. Sim, mas a narrativa que eles contam para eles mesmos é essa, de que nós estamos aqui defendendo a liberdade. Todos termos sequestrados a liberdade, a democracia, no caso, a família, o amor. São todas palavras sequestradas pela extrema-direita, ressignificadas justamente com a capacidade de mobilizar, tanto que a gente está vendo aí os parlamentares brasileiros recorrendo aqui a Europa e os Estados Unidos com a narrativa de que nós vivemos no Brasil uma ditadura.

É tão sequestrada que ela não é só sequestrada naquele momento, naquele discurso, ela cria, inclusive, uma narrativa paralela de que nosso país vive uma ditadura. Como disse o Eduardo Bolsonaro lá em Budapeste na semana retrasada, talvez eu volte para o Brasil e seja preso no aeroporto, como se fosse uma repressão a ele.

Existem alguns aspectos que, convivendo e observando atentamente esses movimentos em vários países ao mesmo tempo, comecei a descobrir algumas coisas. Eles se apresentam como os que estão trazendo a revolução. É irônico, considerando que são extremamente conservadores.

Apesar disso, a narrativa que eles constroem para si mesmos é essa: de que estão lutando pela liberdade. Eles afirmam que termos como liberdade, democracia, família, amor foram sequestrados pela extrema-direita e ressignificados de forma a mobilizar as pessoas. É por isso que vemos parlamentares brasileiros recorrendo à Europa e aos Estados Unidos com a narrativa de que vivemos no Brasil sob uma ditadura.

Essa manipulação é tão eficaz que não se limita apenas ao momento do discurso; ela cria uma narrativa paralela de que nosso país está sob uma ditadura. Como mencionou o Eduardo Bolsonaro em Budapeste, de que talvez quando ele voltasse para o Brasil fosse preso no aeroporto, como se estivesse sendo reprimido.

– A Europa implementou normas mais rigorosas em relação ao uso das mídias sociais, especialmente para lidar com as fake news e elas foram feitas rapidamente para refletir nas campanhas do Parlamento Europeu. Você consegue notar alguma mudança? Acha que já é possível medir esse impacto?

– Eu acho que foi muito, vamos assim, foi muito tarde na eleição europeia. Eu acho que a gente não vai ver um impacto nessa eleição, eventualmente nas próximas, mas nessa eleição eu acho que ainda eles estão nadando de braçada. Fazer nada também não adiantava, tinha que fazer, e é verdade, acho que tinha que fazer o que foi feito, mas acho que foi tarde demais.

A base já estava estabelecida e a desinformação já circulava. Vou te dar um outro exemplo. Não é só para o Parlamento Europeu que isso está acontecendo. Aqui na OMS, na Organização Mundial da Saúde, está sendo negociado e deve ser aprovado na semana que vem, um tratado que eles chamam de tratado pandêmico, que é basicamente criar regras para que em uma próxima pandemia a gente saiba o que cada país vai ter que fazer.

A China vai ter que se abrir para a inspeção internacional, o cara que produz vacina vai ter que distribuir vacina também para o país pobre, então aquelas coisas que a gente não sabia quando aconteceu a Covid, eles estão fazendo um tratado para isso. E olha só a extrema direita, veio atacando de uma forma brutal o tratado, porque tem um parágrafo que diz o seguinte: os países se comprometem a lutar contra a desinformação na pandemia.

Isso, para eles, é, como assim? Vai afetar a minha liberdade de expressão? Não! Ninguém está falando de liberdade de expressão, está falando de mentira, está falando de desinformação como arma política e criminosa. Ninguém está falando de liberdade de expressão aqui, mas eles encamparam isso como uma ameaça à liberdade de expressão mundial.

E é tão maluca essa liberdade de expressão que, por exemplo, eles estão circulando nas redes sociais uma campanha que diz que segundo o tratado da OMS, se tiver uma nova pandemia, se lá, no interior do Paraná, se você não colocar máscara, a OMS vai mandar tropas para o país para te colocar máscara.

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– Qual o efeito, qual a herança desse avanço extremista da direita sobre as relações internacionais, as relações entre as nações? Me lembro de você fazer matérias sobre os vexames que passávamos com a representação diplomática do Bolsonaro. Mas, para além do vexame, acredito que haja riscos também… Qual a herança desse avanço?

O vexame é a parte mínima dessa história, sinceramente. É a parte que a gente… E que eles não estão nem aí. Não é o problema. O que tem acontecido é que tudo passou a ser muito mais difícil, porque qual é o objetivo da extrema-direita nos órgãos internacionais? Quebrar consenso. Lembra daquela frase que o Bolsonaro disse na primeira viagem dele aos Estados Unidos, que ele falou eu “preciso primeiro destruir, depois eu vou construir”.

Não sei se você se lembra, ele falou num jantar. Essa é a lógica na esfera internacional. Primeiro, eles precisam romper o consenso sobre tratados que eram consensuados. Isso é muito complicado de ser feito e o impacto disso é um terremoto. Isso é um terremoto, porque tratados que ninguém mais discutia, porque eles estavam estabelecidos, passaram a ser questionados. Um revisionismo total. E não é essa a parte também inovadora deles, não é que eles vão embora.

Ah, eu saio da OMC, por exemplo, nos Estados Unidos. Eu vou sair da OMC. Não. Eles ficam e destroem por dentro. Eu vi isso acontecer. A OMC, a Organização Mundial do Comércio, parou, hoje é uma entidade que não tem basicamente sentido no Tribunal. O tribunal era o que garantia que aquelas regras existissem, mas não adianta você ter uma Constituição, se você não tem um juiz. Você tem uma Constituição ótimo, agora se você violar aquela lei, não acontece nada.

E o que aconteceu com a OMC? Tem as regras do comércio internacional, mas ela não tem mais um tribunal, porque foi desmontado pelos americanos, pelo Trump. Ele nunca saiu da instituição, ele desmontou por dentro. A Declaração Universal de Direitos Humanos, Tratado de Não Proliferação, tantas outras coisas, inclusive o Tratado de Paris, você vai tentando modificar para criar o seu mundo. Vamos assim dizer, desfazendo uma realidade e criando outra no lugar.

E essa outra no lugar é com o que a gente precisa ficar muito preocupado, porque ela é reacionária, ela é de limitação de direitos, ela é realmente, realmente perigosa, não tem outra palavra. Estive no Comitê de Eliminação da Discriminação contra a Mulher. Parece óbvio, certo? Quem poderia ser contra isso?

Bom, aí você descobre que tem alguém no fundo da sala filmando e editando as cenas conforme sua vontade, distorcendo o que foi realmente discutido, uma história que não tem nada a ver com o que tinha acontecido ali, e compartilhando essa versão nas redes sociais. Isso é feito não com o objetivo de enganar, mas sim para criar ruptura e conflitos.

Então isso eles têm feito de uma forma permanente em todas as organizações, em todas as reuniões, com uma eficácia impressionante. O resultado disso? Uma total falta de confiança mútua. O mundo se modificou. E se modificou brutalmente. Brutalmente.

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Capa: Jamil Chade – Arquivo Pessoal. Imagens InternasJamil Chade/Arquivo Pessoal. MSTBrigada Ghassan-Kanafani, na Palestina/ Palestina LivreJuntos