Raial: Como é que você pode ver tanto, sem enxergar nada? –
Há alguns anos atrás, li um conto de Marina Colassanti intitulado “O homem atento”.
Nunca estive a salvo dos contos dessa autora, visto que quase tudo o que ela escreveu me causa algum tipo de sentimento diverso: choro copioso, trauma de trauma irrecuperável, melancolia, amor incondicional. Essa história em particular, no entanto, está no rol daquelas que fazem pensar e estabelecer analogias sobre minha forma de interagir com a vida.
Trata-se do caso de um indivíduo que era – ou acreditava ser – capaz de perceber tudo à sua volta. A sensação de onisciência prossegue até o momento em que ele se dá conta que seu desejo de eterna atenção, mesmo para alguém possuidor uma percepção extraordinária, não é real; mesmo tendo a capacidade de ver uma grande parte das coisas, há sempre algo que passa despercebido.
E às vezes ocorre que vejamos tudo, exceto o mais essencial. ´A descoberta do tempo que passara atento, e ainda assim tão distraído, é levemente melancólica, mas é também imbuída do prazer e da surpresa de viver uma emoção no mundo real, e não apenas meramente assistir.
Este conto me veio à cabeça quando me propus a construir uma reflexão especificamente tratando daquilo que tenho pensado nos últimos tempos sobre a estranha e paradoxal combinação que constitui a contemporaneidade, que reúne as condições de ‘Era da informação’, de destituição das fronteiras espaciais, de interligação de todos, com todos, o tempo todo, ao mesmo tempo que também se caracteriza pela desinformação (inclusive voluntária), pelo acirramento dos choques interculturais, e por redução drástica da competência humana de estabelecer relações profundas entre si.
Como acontece não raro, esse não é um tema novo nos meus textos. E será que existe algo de realmente novo nesse mundo? Cada vez mais, acho que não…
Bom, em primeiro aspecto, quero explicitar que eu, como qualquer pessoa, não tenho a pretensão de estar atenta à totalidade das coisas. Na verdade, e também como qualquer pessoa, eu escolhi a dimensão do todo que me interessa, aquela parcela da miríade de opções disponíveis para se concentrar, e que eu procuro acompanhar.
E como existe de fato uma diversidade de pessoas, com interesses diversos dos meus, é de se supor que nenhum assunto deixe de ser objeto de atenção de alguém, em algum lugar.
Minha escolha de atenção reside naquilo que me toca em específico: autismo, por conta do meu filho; algumas pautas feministas, por causa da minha necessidade de sobreviver a um mundo onde é arriscado ser mulher; meio ambiente, porque eu estou nesse mundo e gostaria que ele sobrevivesse a mim; livros, contos, poesia, porque eu pretendo sobreviver a esse mundo; música, arte, jardinagem, quadrinhos, RPG, adoção, medicina natural, alguma coisa de culinária, e por aí vai o meu vasto etcetera e as minhas reticências.
Mas, é claro, como todos sabem, há para mim O tema, aquele ‘Assunto dos assuntos’, que interessa mais do que todo o resto. E, por óbvio, o que também todo mundo sabe, é que a concentração de minha atenção é a causa indígena. A questão, no entanto, é que neste caso não se trata nunca de atenção meramente ‘expectante’.
Não se trata de ler, curtir, compartilhar. Se trata de viver em uma contemporaneidade recentemente apontada por Ailton Krenak como “a pior época para os indígenas”, e isto, em um país que certamente não figura entre os melhores naquilo que se refere à justiça social e garantia de direitos mínimos. (E contando sempre com a ideia de que essa época já esteja por aí, mais ou menos do mesmo jeito, há mais de 500 anos… Né?)
E é justamente por estarmos nesse momento, e nessas circunstâncias, que se faz necessário viver em eterno estado de atenção e prontidão.
E, ao mesmo tempo, como a personagem do conto de Marina, cedo ou tarde, nós nos descobriremos impotentes na capacidade de observar todas as coisas, ainda que seja justo isso que nos é demandado. E, acima de tudo: o fato de termos conhecimento das coisas é só um passo. O passo seguinte é a ação. E sem que se dê o segundo passo, melhor seria simplesmente não dar nenhum.
Mas o que eu gostaria de chamar a atenção aqui, é que essa vigília, e a necessidade de intervenção não está a cargo apenas dos povos originários.
E é assim porque as circunstâncias se ligam à maneira das teias de aranha, em que cada fio se une ao outro numa trama complexa, e a tensão em uma única dessas linhas reverbera em toda a estrutura.
E, só para deixar claro: não é o caso de ser nesta analogia um humano brincando de Deus com uma pequena teia infinitamente menor e frágil, que pode ser destruída com um simples gesto de mão. A perspectiva aqui tem a de ser a dos insetos.
Porque estamos dentro da teia, da rede, – inclusive a ‘web’ – da mesma trama.
E é sob esta perspectiva que eu gostaria que começássemos a encarar a realidade dos fatos: cada pessoa que acompanha o desenrolar dos fatos, e/ou os vive no mundo azul do Facebook, deveria se perceber dentro da teia, e não como expectador externo. Pensar assim muda a noção com que vemos as coisas. E é importante que mude.
Os fatos se ligam numa teia, e, nem sempre o poder de tanger os acontecimentos está nas mãos da aranha que a cria. Aqui há bem mais do que uma aranha, e elas não são necessariamente cooperativas entre si o tempo todo. E, para além da própria teia, existe uma enormidade de coisas (até seres com mãos colossais brincando de Deus). E, nesse emaranhado, repito: tudo se interliga, tudo reverbera, e há bem pouca coisa que se possa considerar fato isolado.
E nesse diapasão ‘a pior época para os indígenas’ se inscreve. Nada do que vem acontecendo deve ser desassociado da perspectiva de conjunto, e é importante que não se perca isto de vista. Ainda que vivamos em um país em que as relações do mundo raion com os indígenas sempre foram violentas, é importante notar que, na atualidade, as coisas vêm se colocando de forma cada vez mais drástica.
Só para citar alguns casos pontuais: este mês de maio já contabilizou um segundo ataque no Maranhão, desta vez contra o povo Krikati; no Mato Grosso do Sul prosseguem as rotinas de ataques aos Kaiowá; somente este ano no Acre ocorreram dois assassinatos de crianças indígenas, vítimas de disparos de armas de fogo. Não é preciso dizer que nenhum desses crimes será investigado como deveria. Ao mesmo tempo, esse mês viu a entrega do Relatório da CPI da Funai e Incra, com todas as aberrações devidas a se esperar de um documento absolutamente tendencioso como este.
Igualmente ao mesmo tempo, vemos todo dia notícias sobre o desmonte da Funai – e ainda sobre o órgão indigenista, vimos também em maio a consolidação de um projeto que começou meses antes, e se efetivou na recente nomeação do General.
Igualmente ao mesmo tempo, leis, projetos e votações colocam em risco direitos que custaram muito para ser conquistados. Aliás, conforme li ontem en passant chegamos já a um outro nível de atentado aos direitos, visto que agora já se fala da instituição de uma nova Constituinte, para a construção de uma nova Constituição, e eu não preciso nem me esforçar para ‘imaginar’ os direitos de quem ficarão de fora!
E o que há de mais sério nisso é que tais coisas aconteçam em um momento em que as emoções e reações a estes fatos se tornaram virtuais. Não há reações profundas, pois tudo passou a ser superficial. As notícias desses fatos chegam, mas não reverberam. As pessoas aparentemente estão sim, atentas, veem muito mais coisas do que eram vistas no passado, mas talvez precisamente por isso, parece que na atualidade essas mesmas pessoas parecem encontrar-se em um nível aquém de sentirem-se de fato incomodadas para qualquer coisa que vá além da manifestação via emoticon.
Como já disse, tendo a ser repetitiva, mas é que repetidamente, e cada vez mais, me vejo diante desse mesmo desconforto: o excesso de dimensionamento da esfera de relações virtuais, em contraposição ao mundo real, a importância excessiva à forma de se posicionar nas redes, mas que não reverbera em um conjunto de atitudes práticas para problemas reais.
Preocupa-me cada vez mais que o recurso ao textão do Facebook, à carta-manifesto publicada em sites e encaminhada pelos grupos do whats, a adesão aos abaixo-assinados do Avaaz ou seus análogos, enfim, a adoção de meios de expressão do/no ciberespaço parecem vir se tornando uma espécie única de se colocar perante os problemas do mundo, quando deveria ser apenas uma das opções, e que, diga-se de passagem, não é a estratégia correta a se aplicar a todos os casos.
Isso se torna muito problemático, na medida em que as pessoas criam a falsa ilusão de que todo o envolvimento que as “causas” demandam é o curtir, comentar, compartilhar. Assim como é terrivelmente problemático que a indignação passe a ser tão virtual, passageira e vazia de substância, a ponto de ser resolvida mediante esse processo automático de tomar conhecimento do fato, reagir com uma carinha adequada ao caso, fazer algum comentário, compartilhar, e fim. Uma semana depois, ninguém se lembra mais, pois já apareceu uma nova polêmica, questão ou assunto para repercutir.
E talvez por isso mesmo nós, povos originários, estejamos diante da pior época. Porque esse é o agora em que as notícias circulam a toda a velocidade. As pessoas não podem mais alegar que não sabiam. Mas, apesar de saberem, parece que todo mundo perdeu a capacidade de se importar.
E isso é dramático quando se está na posição de alvo de balas de verdade. Quando se é ameaçado e morto de verdade. Quando a lei do país valem tanto quanto um post-it.
E sim, independente de os leitores desse texto serem indígenas ou não, o tema aqui é ‘intercultural’. Não só por fazermos parte da mesma humanidade, mas também porque quando não levamos a sério as ameaças que estão sendo colocadas de maneira imediata contra grupos aos quais ‘não pertencemos’, crendo-nos incólumes e a salvo pelo fato de não ser conosco, estamos deixando de levar em consideração que quando abrimos a porta de certos infernos, deixamos livre a passagem para qualquer demônio disposto a dar um passeio – talvez o contexto político nacional seja o maior exemplo disso.
Tempos atrás li, inclusive, uma matéria que falava da grande ironia que existe no fato de sermos justamente nós, os povos originários, que tão ferrenhamente defendemos a Constituição Federal dessa república que com tanto afinco buscou formar-se sobre os nossos túmulos. Sim, realmente irônico. A defendemos, mesmo com toda a consciência de sua imperfeição e incompletude, e apesar de saber-se da sua baixa aplicabilidade. E, enquanto isso, impera o silêncio de uma maioria que se julga incólume.
E sim, pode até ser que, no que toca a um ataque específico, possa se sair ileso. Mas repito que as coisas não param por ai… Façamos aqui a analogia básica com a demolição: quando se quer derrubar um edifício, se ataca a base, não o topo, mas quando a construção cai, o nível superior também vai ao chão. Talvez falte essa consciência de todo, essa perspectiva de correlação, essa noção que é muito presente dentro das sociedades indígenas, de que tudo afeta a todo mundo o tempo todo.
Diferentemente, no mundo raion é tão comum haver gente que passa a vida achando que não tem absolutamente nada a ver com aquilo que afeta a pessoa que está exatamente ao seu lado.
E sim, sei que é esperar demais de um país onde a clareza de percepção está tão afetada, que alguns ainda conseguem se dizer surpresos com o fato de que há anos temos sido governados a partir do açougue. (E, o mais triste é que em todos esses anos, temos gritado que da carne desse açougue verte sangue indígena, e quase ninguém liga…)
Não bastasse ‘só isso’ para alimentar minha visão pessimista, ainda há a sensação de que o poder de reação esteja agora reduzido a uma carinha de raiva ou lacrimosa diante de uma notícia, e que aparentemente se tem a ilusão de que a questão será resolvida mediante o compartilhamento raivoso dessa notícia.
E, me entendam, não estou querendo aqui dizer que ‘não adianta’ compartilhar, ou tomar conhecimento das coisas, mas que isso é uma reação irrisória, quando tanto está em jogo. Porque quando uma parcela da humanidade está ameaçada, toda ela está!
Quero finalizar este texto dizendo que as reflexões aqui propostas são derivadas do meu adoecimento perante este tipo de realidade. Adoeço, porque apesar de todo o tempo que eu gasto da minha vida lendo e compartilhando informações referentes às lutas e desafios da causa indígena, faço isso com emoções reais.
E tenho emoções reais, porque sei que existe um mundo real, pelo qual importa lutar. Sei que existem vidas em jogo. Sei que existe gente morrendo. E sei que essas mortes não têm sequer expectativa de serem justiçadas. E digo ainda que não escrevo aqui esperando ‘converter’ almas a esta causa. Não sei se esperar tal coisa seria saudável, dadas as circunstâncias aqui mesmo evidenciadas…
Mas escrevo, mesmo no desespero de saber a ineficácia das palavras.
Escrevo. Talvez na esperança de acordar alguns. Um só que seja. E, quem sabe, um dia, me permitir ao prazer de poder descansar e me distrair sabendo que há outros que vigiam.
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Nota da autora: Para quem ainda não leu ou quer reler, segue o link para o conto ‘O Homem Atento’, de Marina Colassanti: http://historiaparaencantar.blogspot.com.br/2011/06/o-homem-atento.html
Exceto pela capa, que é do artista indígena Jaider Esbell Macuxi, todas as imagens desta matéria foram selecionadas por nosso parceiro Jairo Lima (www.cronicasindigenistas.blogspot.com.br) são de autoria da artista Heloisa Paim e fazem parte da exposição “Autóctone”
Raial Orotu Puri – Indígena do povo Puri. Graduada em Direito. Doutoranda em Antropologia. Chefe de Divisão no IPHAN/Acre.
ANOTE:
“No dia em que não houver lugar no mundo para o índio, não haverá lugar para ninguém.”
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