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Rediscutindo racismo, negritude e mestiçagem

Rediscutindo racismo, negritude e mestiçagem

“Todo racismo é abominável. Não tem racismo melhor ou pior”. Kabengele Munanga fala sobre a dinâmica do racismo à brasileira, não dito, não assumido, e do processo de luta e conscientização

Por Kabengele Munanga, Nilma Lino Gomes, Alex Ratts, Ana Maria Gomes, Cidinalva Silva Camara Neris, Roberto Carlos da Silva Borges, Sulamita Rosa da Silva e Rose Spina/Teoria e Debate

O entrevistado desta edição é brasileiro por naturalização desde 1985. Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo, onde se graduou em Antropologia Social e Cultural pela Universidade Oficial do Congo (1964-1969), iniciando sua carreira acadêmica como professor assistente. Em 1969 recebeu uma bolsa de estudos do governo belga (Office de Coopération Au Developpement-OCD) para iniciar seus estudos de pós-graduação na Universidade Católica de Louvain, Bélgica, onde permaneceu até 1971. Entre os anos de 1975 a 1977, com bolsa concedida pelo Itamaraty, em convênio com a Universidade de São Paulo, concluiu seu doutorado em Ciências Humanas (com área de concentração em Antropologia Social), e seguiu a maior parte de sua carreira acadêmica como professor efetivo, de 1980-2012, na mesma universidade, onde se aposentou como professor titular, atuando principalmente nas áreas de Antropologia da África e da População Afro-Brasileira, com enfoque nos seguintes temas: racismo, políticas e discursos antirracistas, negritude, identidade negra versus identidade nacional, multiculturalismo e educação das relações étnico-raciais. Autor de mais de 150 publicações entre livros, capítulos de livros e artigos científicos, Kabengele foi um dos protagonistas intelectuais negros no debate nacional em defesa das cotas e políticas afirmativas. Em junho último recebeu o título de Professor Emérito pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Para conduzir este diálogo com o professor Kabe, como é chamado por seus alunos, convidamos Nilma Lino Gomes, professora emérita da Faculdade de Educação da UFMG, ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em 2015 e das Mulheres da Igualdade Racial e Juventude, Direitos Humanos 2015 e 16, que reuniu o seguinte time: Alex Ratts, professor titular na Universidade Federal de Goiás nos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia e de pós-graduação em Antropologia, coordenada o Laboratório de Estudos de Gênero, Étnico-Raciais e Espacialidades do Instituto de Estudos Sócioambientais da UFG; Ana Maria Rabelo Gomes, é professora Titular da Faculdade de Educação da UFMG, onde participou da criação do Programa de Ações Afirmativas na UFMG e é membro da Comissão de Acompanhamento do Notório Saber (PrPG/UFMG); Cidinalva Silva Camara Neris, da Coordenação do Curso de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, na UFMA; Roberto Carlos da Silva Borges, professor do Departamento de Línguas Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais (Leani) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER), do Cefet/RJ; e Sulamita Rosa da Silva, graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Acre/UFAC, mestra em Educação pela UFAC e doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo/Feusp. Pela FPA, participou a jornalista Rose Spina.

Nilma Lino Gomes: Agradecemos ao professor Kabengele Munanga por nos conceder essa oportunidade de aprender ainda mais com ele. Também um agradecimento à Fundação Perseu Abramo (FPA), onde construímos essa agenda desde o ano passado, que foi um trabalho ainda do NAPP de Igualdade Racial, com a comunicação e a editora da FPA. Quando tivemos a ideia da entrevista, pensei em convidar para entrevistá-lo acadêmicos com maior experiência, pesquisadores e professores de expressão mais recente da universidade. Ao mesmo tempo, pesquisadores de universidades diferentes regiões do país e um grupo que pudesse ser interracial e todas as pessoas que de alguma forma foram inspiradas pelo professor em suas teorias, ações afirmativas, discussões na graduação e pós-graduação. Nessa seleção escolhi também duas pessoas que foram suas orientandas, o professor Alex Ratts e eu. Gostaria de começar com a Sulamita Rosa.

Sulamita Rosa: Na obra Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil, o senhor abordou que a classificação racial do mestiço no país é diferente das classificações dadas no contexto dos Estados Unidos ou da África do Sul e que, dependendo do grau de miscigenação, a pessoa mestiça pode se autodeclarar branca ou não. Nos últimos meses, tem surgido discussões acaloradas nas redes sociais sobre essa reivindicação do termo pardo, separado da categoria negro, como se, por exemplo, fosse possível dividir parditude, como experiência autônoma e diferente da negritude, parafraseando Beatriz Bueno e Ericson Saint Clair no artigo “Impedidos de entrar em Wakanda – Reflexões sobre parditude, manifestações midiáticas e desafios de pertencimento”. Em síntese, é possível pensar parditude, separado da negritude no Brasil e também para além do contexto brasileiro?

Kabengele Munanga: Como costumo dizer, nós não temos respostas, o que vou fazer não é responder, mas dialogar com essa pergunta muito rica. A mestiçagem é um fator da genética humana. É impossível evitar a mestiçagem. Onde os povos se encontraram, seja em condições de paz ou de guerra, houve mestiçagem.

O Brasil foi o país que mais recebeu africanos deportados e escravizados nas Américas, teve um intenso processo de mestiçagem e o consideramos como um dos países mais mestiçados da diáspora. Os que nasceram no contexto da violência contra a mulher negra e os que nasceram no contexto de relações amorosas, todos fazem parte da história e da mestiçagem no Brasil e em todos os países da diáspora negra nas Américas.

O problema é o uso político-ideológico que se faz da mestiçagem e das classificações raciais. Nos Estados Unidos e na África do Sul, foi dado ao mestiço um significado diferente. Nos EUA praticaram o que nós chamamos de a regra de uma única gota de sangue. Basta ter uma única gota de sangue negro, africano, mesmo tendo 99% de sangue branco para ser considerado negro. Geneticamente, os mestiços existem, mas política e socialmente, são simplesmente considerados negros. É claro, que pelo fenótipo, uma pessoa que recebeu uma única gota de sangue negro pode ser considerada branca, mas se descobrirem que tem essa gota de sangue africano, ela é considerada negra. Isso tem consequência na luta contra o racismo, porque os mestiços e os pretos ficam unidos na luta contra um inimigo comum.

Na África do Sul, durante o regime do apartheid, houve uma classificação diferente. Os mestiços constituíram uma categoria que nós chamamos de tampão, intermediária entre os negros e os brancos. Assim, tinham algumas regalias que pretos não tinham, mas politicamente não estavam na estrutura do poder. Isso também tinha consequência, pois afetava e enfraquecia a luta dos oprimidos diante do racismo.

No Brasil, o que conta é a aparência, o fenótipo. Basta ter a aparência branca, mesmo sendo mestiço, para ser considerado branco. Lembrem-se daquele episódio de dois jovens gêmeos na UnB, quando criaram o sistema de cotas, um entrou pelas cotas e o outro foi impedido, porque aparentemente era branco.

Essas categorias têm consequência política. No Brasil a mestiçagem foi muito utilizada para negar a discriminação racial, para dizer que não tem branco, não tem negro, somos todos mestiços. Essa ideia passou até pela cabeça de alguns grandes intelectuais, como Darcy Ribeiro que, em seu livro “O Povo Brasileiro”, defende a identidade brasileira como mestiça, embora ele concorde que exista racismo no Brasil.

Então, isso foi muito utilizado para escamotear os problemas da sociedade. Certamente, a pureza não existe, é um mito. Eu recebi 50% do meu patrimônio genético da minha mãe e 50% do meu pai. Portanto, sou geneticamente um mestiço, embora seja fenotipicamente um preto. Somos todos mestiços, mas o problema está nos cruzamentos entre pessoas das chamadas raças. No Brasil, tivemos isso e agora temos o que chamamos de colorismo. Algumas pessoas estão defendendo hoje a identidade mestiça, os pardos. É um direito que eles têm. Geneticamente, ser um mestiço é inegável, mas é uma questão política. De que lado essas pessoas se colocam na luta contra o racismo? De uma maneira ou de outra, elas também são vítimas do racismo. Havia uma época em que eram chamadas de mulatos, que é um pejorativo, como se sabe mulato vem de mula. Há momentos em que a competição se acirra e aquele mulato ou moreno se torna simplesmente um neguinho ou neguinha metida. Ou eles se assumem, politicamente, como negros, o que é muito bom, porque a união faz a força, pois todos são vítimas do racismo. Então, pretos e pardos vão se unir contra o inimigo. Na luta contra o racismo, a divisão não é proveitosa nem para os negros, nem aos chamados pretos, nem aos pardos.

Mas é um processo. Conheço muitas pessoas pardas, homens e mulheres, que assumem a sua negritude, lutam como negro para transformar a sociedade. Embora tenham consciência que são geneticamente mestiços, mas politicamente elas assumem sua negritude na luta contra o inimigo comum.

Nossa luta não vai ganhar com esse colorismo e essa divisão entre os pardos e os pretos. As pessoas estão criando esse movimento, mas as vítimas do racismo coletivamente não ganharão com isso. Ganhará a ideologia racista, do meu ponto de vista.

Roberto Carlos da Silva Borges: Você nos ensinou que o racismo é um crime perfeito e hoje não temos a menor dúvida sobre isso. Sabemos também que o racismo atua como uma tecnologia sofisticada e que se aprimora a todo momento. A despeito disso, nós vivemos hoje no Brasil um momento sem precedentes, principalmente se pensarmos na representatividade de pessoas negras nas mídias televisivas, se pensarmos no número de pessoas negras graduadas, inclusive em cursos diferentes das Ciências Humanas e Ciências Sociais, para os quais a maioria de nós concorria quase que exclusivamente até pouquíssimo tempo. Em paralelo a isso, temos um número cada vez maior de pessoas que não são negras interessadas em se engajar na luta antirracista, em não reproduzirem atos racistas e até mesmo se tornarem antirracistas. Qual a mensagem que poderíamos dar às pessoas brancas que já entenderam que o racismo é um mal social e que querem estar ao nosso lado nessa luta antirracista?

Kabengele Munanga: Todo racismo é abominável. Não tem racismo melhor ou pior. Só que as dinâmicas são diferentes e o racismo à brasileira, como costumo dizer, é comparativamente ao que aconteceu no sul dos Estados Unidos, com as leis de Jim Crow, ou no regime do apartheid, é um modelo completamente diferente. Nos Estados Unidos e na África do Sul, o racismo fazia parte do aparelho do Estado, era institucionalizado pelas leis segregacionistas. Havia o espaço do negro e o espaço do branco, não se misturavam. Até o campo de futebol, na África do Sul, durante o apartheid, era dividido. E como consequência, as pessoas nesses modelos de racismo com segregação racial se uniram para lutar contra o racismo.

O nosso racismo era o racismo não dito, não assumido. A democracia racial é dizer que nós não somos racistas, os racistas são os brancos dos EUA e da África do Sul. Aqui somos todos mestiços. Isso acabou por matar a consciência das vítimas, negros, a consciência das pessoas brancas e vitimizadas. Então, nesse sentido que eu costumo dizer que é um crime perfeito, mata duas vezes, a primeira vez pelo silêncio, dizendo que não somos racistas, e mata mesmo, fisicamente. É como um carrasco. Você não vê o rosto do carrasco, como diz o judeu Elie Wiesel, Nobel da Paz. O carrasco mata sempre duas vezes, a segunda vez pelo silêncio. Esse é o nosso modelo de racismo, por isso temos dificuldade de derrotá-lo.

Onde tinha lei. A luta começou pela supressão das leis racistas. Aqui não tinha nem lei. A lei Afonso Arinos foi de 1951, 60 anos depois da Abolição. Os negros viveram vítimas de racismo, não havia nenhuma lei que os protegia. Essa lei também não funcionou, porque simplesmente considerava contravenção penal e não crime.

Precisou da Constituição de 1988 para ter uma outra lei que diz que racismo é um crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão. Lei também que não funcionou. Agora, com a nova lei que considera injúria racial como crime de racismo vamos ver se funciona.

Pergunte para um brasileiro hoje, de qualquer lugar na rua, se ele já viu um racista, ele não vai mostrar um racista. Se você perguntar para ele se ele já foi racista, ele vai dizer que não. Então, é difícil destruir um sistema de discriminação racial não confessado e assumido. A lei contra a discriminação racial é uma conquista da sociedade brasileira, mas não resolve todo o problema porque a lei vai punir os comportamentos sociais que nós podemos mensurar e observar. Os preconceitos que são introjetados em nossas cabeças pela educação estão num terreno que as leis não penetram. Por isso, precisamos de uma educação antirracista, que sozinha também não basta, precisa de uma política de inclusão social das vítimas de discriminação racial, porque esse abismo não vai ser preenchido automaticamente. Os negros precisam ter acesso à educação superior de boa qualidade, escola técnica de qualidade… A educação é como um cordão umbilical, pois tudo está ligado à educação.

Além da educação, o negro tem que ser representado em todos os setores da vida nacional. E disso ainda estamos muito longe. Com a política de cotas, que as pessoas chamam de cotas raciais em oposição a cotas sociais… Uma falsa oposição, porque os problemas da sociedade são todos problemas sociais. Visto deste ângulo, as cotas ditas raciais são cotas sociais, porque o social é complexo e não tem uma receita única para resolver os problemas da sociedade. Então a receita séria, específica, são políticas focadas, de ação afirmativa.

Mas nos últimos anos, e nisso concordo com você, a consciência cresceu. Alguns membros da sociedade brasileira, da sociedade civil mobilizada, se deram conta que o racismo não é um problema do negro, mas um problema da sociedade brasileira. Só a população brasileira consciente em solidariedade com a vítima poderia derrotar esse monstro que nós chamamos de racismo.

Da mesma maneira, o machismo não é um problema da mulher, é um problema da sociedade brasileira. As mulheres não lutam simplesmente para serem reconhecidas pelos homens, lutam para mudar a sociedade. A humanidade não pode ser encarada somente do ponto de vista do homem. Então essa consciência está crescendo. Hoje ligamos a televisão e vemos numa novela atrizes e atores negros, há alguns jornalistas negros e negras, que não se via há 20 anos. Eu tenho uma experiência de 48 anos no Brasil. Quando cheguei, não via negros nesses lugares. Alguns brancos, beneficiados pela branquitude, estão se dando conta de que a sociedade tem de mudar para que haja equidade, que haja igualdade de oportunidades na vida. O processo está crescendo, mas ainda somos pouco representados. É um processo, do meu ponto de vista, que vai durar algumas gerações, porque a gente sabe o que é o racismo.

Quantos livros já foram escritos por intelectuais para explicar o que é o racismo? Toneladas de livros não resolveram porque é um fenômeno muito complexo. Não há uma receita, os caminhos são os caminhos de luta. Desde o livro de Silvio Almeida, ninguém fala de racismo sem dizer que racismo é estrutural. Claro que o racismo faz parte da estrutura da sociedade, como o machismo, como as classes sociais fazem parte da estrutura. Mas como mudar a estrutura sem mexer com ela e com que armas? Essa estrutura da qual estamos falando é visível como a estrutura de uma casa, de um prédio? É um conceito abstrato. Essa estrutura é social, política, econômica, mental? Então é difícil destruí-la porque, no nosso caso, é uma estrutura de uma sociedade capitalista para criar um outro modelo da sociedade. É preciso lutas e revoluções. Podemos sonhar com isso, pois da utopia também se vive, mas o que temos concretamente para lutar contra o racismo são três caminhos clássicos: leis que funcionam, educação antirracista e política de inclusão social. A consciência está crescendo, do meu ponto de vista. O exemplo pilar que eu costumo mencionar é que antes da lei federal, da lei das cotas, havia já mais de 100 universidades públicas que trabalhavam com política de cotas. Eram universidades dirigidas por brancos, que entenderam que se trata de um problema da sociedade. Apesar da oposição de alguns.

Cidinalva Silva Camara Neri: Eu sou professora de Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, na Federal do Maranhão, que é a única licenciatura no Brasil voltada para a formação de professores e professoras para trabalhar com educação antirracista na escola de Educação Básica. Nessa experiência, eu tenho percebido dois movimentos que são duas falas bem características do Maranhão, que é o segundo estado mais negro do Brasil, a depender do censo. Nosso curso também tem um grande público de estudantes negros e eu tenho escutado muito esses nossos estudantes.

De um lado, há uma grande alegria em expressar que foi na licenciatura que eles tiveram oportunidade de se descobrir enquanto negros e negras. São falas muito recorrentes de como eles estão passando por esse processo de compreensão da sua negritude, de compreensão da sua história e inclusive isso muda essas relações familiares e sociais. De outro lado, especialmente aqueles que já estão na fase do estágio pedagógico, já no chão da escola, apresentam uma preocupação que é a permanência na universidade, de ter acesso à academia. No estágio, eles ingressam, mas há uma dificuldade de permanência e barreiras que percebemos ainda mais na construção de uma educação antirracista na educação básica. Que palavras o senhor teria para essa juventude que passa por esse momento de alegria de se descobrir e de se compreender enquanto juventude negra, negro, e ao mesmo tempo percebe as dificuldades de se manter na universidade de levar a educação antirracista no Brasil?

Kabengele Munanga: O futuro de uma de uma nação é a sua juventude, o futuro não são os idosos. Se você olhar hoje os países que consideramos como mais desenvolvidos, são países que investiram massivamente na educação de boa qualidade. Veja os países da Ásia ou os países como China, Índia e outros, que eram considerados subdesenvolvidos. Investiram na educação de boa qualidade. Até os países capitalistas, os americanos investiram muito na educação de boa qualidade. Até os melhores cérebros da Ásia, da América ou da África foram recebidos pelos americanos, até na Nasa, deixaram de ser vistos como negros porque eram inteligentes e não poderiam renunciar àqueles cérebros que saíram de seus países por questões políticas.

Nossos jovens são diferentes da geração anterior, tanto na África como aqui na diáspora, são pessoas que tiveram uma educação que receberam em algumas famílias já com a consciência da existência do racismo na sociedade brasileira.

As meninas receberam uma educação diferente, se deram conta que estamos vivendo numa sociedade machista. As pessoas que querem viver sua sexualidade diferente descobriram que têm o direito de vivê-la como quiser. Isso é um processo que ocorre para alguns pela educação, alguns por meio da imprensa progressista, outros através dos movimentos sociais dos quais participam, o que as gerações anteriores não tinham. Vou dar um exemplo de um intelectual que vocês conhecem, um dos melhores que o Brasil produziu, Milton Santos. Eu o conheci em 1981, em um congresso no Rio de Janeiro, na Cândido Mendes, em uma mesa na qual eu debatia o racismo. Então, ele se aproximou, se apresentou e me disse: fiquei muito contente de escutar sua fala, porque na nossa educação, a família, nossos pais, não tocavam nessa questão do racismo.

Sobre isso há o livro de Eliane Cavalleiro, Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar. Os pais, tanto brancos como negros, não tocavam no racismo. Hoje, com o crescimento de consciências, muitos pais já sabem trabalhar isso na família. Até alguns que tiveram casamento interraciais, que têm filhos mestiços, já educam seus filhos antes de ir para escola porque os filhos sofrem racismo. Às vezes o filho chega em casa e diz para os pais que não queria ir naquela escola, mas não diz que sofreu racismo. Então, isso precisa ser trabalhado antes. A nova geração tem consciência da questão racial, já está assumindo a sua negritude. Eu tenho netos mestiços que se assumem como negros.

Eu fui colonizado e, em plena colonização, nossos pais viviam em aldeias e não falavam do colonialismo com os filhos. Esta é uma geração que começou a lutar contra o colonialismo, jovem de 30 e poucos anos, como vemos hoje no Gabão, na Nigéria.

Vemos pela linguagem, que é muito forte. Hoje os jovens na faculdade falam de colonialidade, de coloniais, o que não acontecia na minha época na universidade. Eles sabem que têm que considerar as sociedades, têm que se emancipar, se descolonizar para não ficar preso a uma educação racista, machista, com uma visão eurocêntrica. Querem olhar no espelho da escola e ver sua cultura, os seus antepassados. Nosso dever, como educadores, é criar essa consciência. Essa é a riqueza que nos podemos deixar a essa nova geração.

Ana Gomes: Interesso-me muito pela temática sugerida por Cidinalva, a mudança entre gerações. Mas vou caminhar na direção de buscar uma reflexão mais focalizada nessa mudança em relação às mulheres, partindo também das reflexões que tomam como referência o seu livro Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil em sua segunda edição, 20 anos depois, que traz essa possibilidade de discussão a partir de um contexto mais contemporâneo. Gostaria de abordar então essa mudança em relação à posição da mulher – e da mulher negra. Com o processo de miscigenação como estratégia de embranquecimento que foi induzido no Brasil, assim como aconteceu no período da escravidão, nos deparamos com uma posição duplamente subalternizada das mulheres negras.

Como o senhor vê o lugar da mulher negra na conformação da sociedade brasileira? E como avançar e conhecer melhor as matrizes africanas que constituem e contribuem para a conformação da nossa sociedade, em particular, refletindo sobre esse lugar da mulher?

Kabengele Munanga: Podemos ficar horas falando sobre isso. Eu costumo dizer que o machismo é uma forma de racismo. As mulheres são discriminadas porque têm uma geografia do corpo diferente da geografia do corpo do homem. Os negros são discriminados porque têm uma geografia do corpo diferente dos brancos. Negro e mulher ocupam posição inferior. O lugar da mulher é na cozinha, educar os filhos… Os filhos homens e as filhas mulheres recebem educação diferentes. Os homens se tornam dirigentes, têm poderes que suas irmãs não têm e as mães também naturalizavam isso. Então, homens e mulheres, se tivessem consciência, deveriam lutar juntos. Se você olhar na história da mulher negra, há um livro de Cheikh Anta Diop, um grande intelectual africano, que mostra que a civilização egípcia era negra e que o matriarcado na África era mais dominante que o patriarcado, a mulher africana era mais emancipada no plano doméstico que a ocidental. Lendo a história da África Ocidental vê-se que as mulheres praticavam o comércio internacional, saindo para outros impérios sem a presença dos homens.

Em impérios antigos africanos como o do Sudão, as mulheres ocupavam a posição de imperatrizes, dirigiam inclusive os homens, que deveriam ser afastados do poder para não se intrometer. Em Angola, a rainha Njinga, lutou até contra a penetração portuguesa na região.

E isso se percebe também na escravidão. Os homens eram escravizados e as mulheres é que dirigiam as famílias. Então, o modelo de família negra durante a escravidão não era o patriarcado. Mesmo depois com as independências africanas, com miséria, desemprego, eram as mulheres que sustentavam as famílias, atuando no chamado comércio paralelo. A mulher acordava às 5 horas e com o filho nas costas saía, comprava aqui, vendia ali, corria para casa, fazia a comida para os filhos, com o marido desempregado. As mulheres tiveram um papel muito importante, participaram do processo de produção, apesar de os homens serem machistas. E isso se vê hoje, em alguns países africanos. No Congresso Nacional de Ruanda, 60% são mulheres, em Gana, 30% e na África do Sul, 40%. Os africanos já elegeram uma presidenta negra, há africanas contempladas com o Prêmio Nobel. Então, as mulheres tiveram um papel muito importante no processo da emancipação e de luta contra todas as formas de dominação.

No Brasil, as mulheres foram vítimas do racismo, assim como os homens, só que também foram vítimas do machismo – duplamente vítimas. Nesse sentido, a luta de libertação das mulheres é dupla, contra o machismo e contra o racismo.

Há literatura em que se dizia que a mulher negra era para trabalhar, a mulata era para fornicar e a branca para casar. Então, as mulheres negras na sociedade brasileira, em países da diáspora, tiveram que lutar duplamente. A linguagem do movimento negro é muito forte, radical. Lutar contra toda essa desigualdade que sofre na sociedade brasileira. E as mulheres negras lutam não apenas para libertar as mulheres do machismo, sexismo, mas para libertar os homens também contra o racismo.

As mulheres estão lutando para transformar a sociedade. Muitas vezes, a mulher burguesa não entende a mulher negra como também não entende a mulher branca pobre. A maioria da população brasileira é de mulheres, mas que lugar elas ocupam no sistema de poder, Congresso Nacional, no Judiciário, no Executivo?

Alex Ratts: Desde o artigo “Origem e histórico do quilombo na África” (Revista da USP, 1996), passando pelo texto “Arte Afro-Brasileira: o que é afinal?” (Catálogo da Exposição Arte-Afro-Brasileira, 2000), recentemente incluído numa coletânea de seus escritos sobre arte africana e afro-brasileira (em Portugal), o que considera importante estudarmos para compreendermos mais a relevância da região Congo-Angola na formação do Afro-Brasil? Temos, por exemplo, os quilombos e muitas influências no português brasileiro.

Kabengele Munanga: A origem de alguns conceitos que utilizamos no nosso cotidiano, como a palavra quilombo, não é conhecida da maioria das pessoas. O ex-presidente Sarney, por exemplo, escreveu o livro Os Marimbondos de Fogo. Provavelmente ele não sabia que marimbondo é uma palavra de língua africana, quimbundo, não é portuguesa.

Quilombo é uma palavra de língua bantu da região Congo-Angola. Entre os quimbundos, quilombo era o lugar onde se fazia a circuncisão dos meninos, a iniciação dos meninos, mas que recebeu uma transformação dentro daquela região, que não tinha a geopolítica africana de hoje, resultado da Conferência de Berlim e da colonização.

Então, no momento de construção dos grandes impérios com muitas guerras, em algumas regiões se utilizava esse lugar de iniciação das crianças como um espaço de resistência. Quando capturavam jovens de outras regiões levavam para nesses lugares onde ocorria o rito de iniciação para que eles se tornassem grandes soldados para lutar contra a formação de alguns impérios e chamam isso de quilombos. Eram lugares de difícil acesso para o inimigo. Então quando os africanos daquela região foram deportados, escravizados na África, eles tinham esse modelo de resistência e de fuga para um território desocupado de difícil acesso, que eles chamavam de quilombo. Daí escolher esse lugar onde resistir, criar uma cultura a partir do modelo de cultura africana, preservar a memória desses seus costumes, suas tradições etc. Os portugueses chamaram esse lugar como de fuga dos africanos, mas a palavra não era conhecida em Portugal. Abdias do Nascimento escreveu Quilombismo. O que está por trás desse ismo é a resistência, aquilombar-se é resistir. Criaram outro modelo de sociedade, com várias etnias porque todos os fugitivos eram recebidos, indígenas, alguns brancos pobres… Esse modelo de sociedade acabou por derrotar o sistema escravista. No Quilombo dos Palmares lutaram quase meio século contra as invasões de portugueses e holandeses. Os quilombos resistiram e hoje são muitos. Fala-se em cerca de 2500 comunidades quilombolas no país, que ainda não têm título de propriedade das terras que seus antepassados conquistaram. Provavelmente, é muito mais.

O conceito de bantu, por exemplo, para aquele povo era simplesmente seres humanos. Só que quando os linguistas ocidentais começaram a estudar as línguas africanas, que eles dividiram em cinco famílias linguísticas, encontraram uma família importante que abrangia a África Ocidental até a África Oriental e Central, batizaram essas línguas de Bantu. É uma identidade atribuída. Assim como sudaneses, maneira como os árabes chamavam os negros da África Ocidental. Os chamados bantu adotaram essa identidade heteroatribuída pelos linguistas comparatistas ocidentais. Criaram até um Centro Internacional de Civilizações bantu. Isso tinha fundamentos históricos e geográfico, pois tinham contiguidades geográfica, empréstimos culturais e migrações que os aproximavam mais do que com os povos da África Ocidental, além das semelhanças linguísticas. Falam línguas bantu, pois todos utilizam a palavra muntu (singular) e bantu (plural) para designar pessoas, seres humanos em geral. De línguas bantu, passaram a ser chamadas de populações bantu e de culturas bantus por cauda das semelhanças culturais entre eles, a “bantuidade”.

As religiões nagôs não são superiores às dos bantu. Essa hierarquização não veio dos africanos escravizados no Brasil, mas sim de alguns estudiosos brasileiros brancos como Nina Rodrigues, entre outros. Cada religião deu sua contribuição, não tem uma religião superior ou inferior à outra. Se uma se concentra no culto dos antepassados, é uma visão. Se a outra acha que existem várias divindades, de água, do céu e da terra, é outra visão. Tem de estabelecer o relativismo cultural. Todas acreditam no Deus que tem nome em todas as religiões, só que os caminho para chegar a ele são diferentes.

Rose Spina: Você fala sobre os órgãos de poder, qual a sua opinião sobre a configuração do atual governo, tentando contemplar de alguma maneira a representação de negros, mulheres, povos indígenas?

Kabengele Munanga: Nos meus 48 anos no Brasil, pela primeira vez eu vi um presidente da República com consciência sobre as questões do negro na sociedade brasileira. No governo Fernando Henrique Cardoso, havia o ministro dos Esportes, o Pelé, que ele chamava de ministro especial. Não sei por que “especial”. No primeiro governo do presidente Luiz Inácio da Silva, Lula, chegamos a quatro ministros e ministras negras. Havia consciência da exclusão do negro na sociedade brasileira e a iniciativa que deve ser representado no sistema do poder, no Executivo. Mais do que isso Lula criou a Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (Seppir, em 2003), que era uma secretaria especial, com estatuto de ministério, que trabalhava com outros ministérios sobre a inclusão do negro na sociedade (Educação, Trabalho, Agricultura, justiça e direitos humanos, entre outros. Esse ministério não era uma política do Estado, era uma política do governo dele. Então, passado esse período, assistimos a um retrocesso importante. A partir de Temer, a presença do negro no governo começou a se diluir completamente. No governo do presidente Jair Bolsonaro, tivemos só um negro no segundo escalão, ou seja, na Fundação Cultural Palmares que teve um comportamento que ninguém entendeu até agora. Conhecemos sua família, seu pai, que é um escritor negro respeitado e com a consciência da posição do negro na sociedade brasileira.

Ao voltar agora, esse governo não perdeu a consciência de que os negros, as mulheres, são subrepresentados na sociedade brasileira. Só que nem tudo depende do governo, que recebe pressões políticas dos partidos que o apoiaram para derrotar o presidente anterior que destruiu o Brasil da maneira como sabemos, destruiu as políticas públicas para negros(a), indígenas, para as comunidades quilombolas, saúde pública, educação, etc. Tudo foi desmontado. Acredito que se dependesse só do presidente Lula, teríamos mais ministras mulheres, mais negros. O que temos hoje, comparando com outros governos, já é significativo, mas não é ainda representativo, concordamos. Se os partidos políticos brasileiros hoje tivessem aberto o espaço necessário para as mulheres, para os negros, no momento das campanhas eleitorais, com financiamento, teríamos chegado à alguma representatividade, mas isso não acontece dentro dos partidos que conhecemos.

Há um desejo muito grande por parte da comunidade negra para que fosse indicada uma mulher negra ao Supremo Tribunal Federal. Necessidade obriga, mas não basta ser mulher negra competente da área exigida. É preciso ser também uma mulher representativa dos interesses da população negra, das mulheres negras e das mulheres em geral.

Outra mudança muito grande, por exemplo, é em relação à África. A política externa do Brasil em relação ao continente africano mudou muito a partir dos governos Lula. Tivemos mais representações diplomáticas africanas no Brasil, como do Brasil nos países africanos, do que em todos os governos anteriores. A proposta de cooperação com os países africanos – apesar de sabermos que não há uma cooperação econômica sem interesses de ambos os lados – era uma política acompanhada de sentimento de solidariedade, relação Sul-Sul, não era uma simples relação capitalista, imperialista. O presidente Lula fez várias viagens ao continente africano durante o primeiro e segundo mandato, onde também era muito respeitado. É o presidente brasileiro mais conhecidos no continente africano. Na África, os intelectuais e políticos conhecem Lula, como o povo conhece Pelé.

Rose Spina: Uma pergunta que vem do nosso editor, Rogerio Chaves. Na sua vasta obra, qual livro você gostaria que tivesse novas edições?

Kabengele Mundanga: Há dois pequenos livros que marcaram meus escritos. O primeiro é Negritude – Usos e Sentidos que teve a primeira edição publicada em 1986, pela Editora Ática. Pela Autêntica, já está na 4ª edição. É um pequeno livro de linguagem acessível às pessoas mais jovens. A população negra começava a discutir a questão de sua identidade, identidade que passava pela negritude. Não se constrói só identidade sem assumir seu corpo, que é a sede material de toda nossa identidade, seja espiritual, intelectual. Só que muitos não sabiam o que era negritude, de onde vinha esse conceito. Alguns perguntavam, por que discutir a negritude no Brasil, este é um país mestiço. Isso é um racismo ao contrário. Naquele momento não se falava de branquitude, que é um conceito que surgiu do pensamento de Maria Aparecida Bento em sua tese de doutorado para mostrar que os brancos, numa sociedade racista, têm consciência das vantagens, dos privilégios, da posição que ocupam na sociedade, sem questionar.

Mas não havia o movimento de branquitude como o movimento de negritude que nasce na década de 1930 e se tornou um movimento de luta contra a colonização, em favor da libertação intelectual do negro etc.

Então, esse livro não foi superado, muitos jovens e as pessoas que trabalham o conceito de negritude continuam a ler. Nesse sentido dei a minha contribuição.

O segundo livro é Rediscutindo a Mestiçagem que eu escrevi porque no processo de construção de sua identidade coletiva os negros se deparavam com a mestiçagem. “A sociedade brasileira é uma sociedade mestiça”. Então, era preciso trabalhar a mestiçagem para mostrar como, embora fosse um fenômeno geneticamente natural, inevitável, era manipulada politicamente na construção da chamada democracia racial, que é um mito. Na realidade, a mestiçagem era manipulada para negar as desigualdades, a discriminação racial.

Esse livro teve um papel importante, pois a mestiçagem foi utilizada até no debate sobre políticas afirmativas, quando lançaram de novo mão do conceito de negritude para dizer que cota para negro no Brasil não tinha sentido porque somos uma sociedade mestiça.

Esses dois livros tiveram um impacto muito grande na luta contra o racismo. E há um outro livro que eu organizei, Estratégias e Políticas de Combate à Discriminação Racial, editado pela USP, onde comecei a discutir as políticas afirmativas antes da Conferência de Durban.

É para se perguntar por que o Brasil está sempre atrasado. O país foi o último a abolir a escravidão, 40 anos depois da França, 24 anos depois dos Estados Unidos. O Brasil era o último a entrar no debate sobre política de cotas, 40 anos depois dos Estados Unidos. Por quê? Para entender tudo isso, é preciso passar pelo uso e manipulação do conceito da categoria mestiço na questão do negro na sociedade brasileira.

Nilma Gomes Lino: Eu queria falar sobre o livro homenagem que você recebeu, Negritudes: Diálogos com Pensamento de Kabengele Munanga, organizado por Jadir Anunciação de Brito, Sergio Luiz Baptista da Silva, Fabiana Limae Fernanda Felisberto, da Autêntica Editora. Este livro tem homenagem de várias pessoas que marcaram a sua vida, inclusive de seu amigo/irmão já falecido, e do seu filho, Bukassa Kabengele.

Gostaria que você falasse o que foi receber essa homenagem, em que as pessoas falam sobre você, sobre os seus escritos e a sua presença na vida delas.

Kabengele Munanga: Quando eu vi esse livro, pensei: fui traído. Até meu irmão, Olabiyi Yai, tem um texto lá. Eu não sabia de nada e esse processo começou em plena pandemia e dois anos depois o livro está sendo publicado. Eu fiquei me perguntando: será que eu mereço tudo isso? Mas, se as pessoas que gostam de mim, que me amam, com quem eu também aprendi, estão publicando isso em minha homenagem, eu tenho que tentar me redescobrir através desse livro.

Não esperava isso porque quando eu entrei nesse debate intelectual, quando cheguei aqui, eu poderia ter ficado estudando a África, mas não sei como abandonei a África para entrar na questão do negro brasileiro. Racionalmente não consigo explicar. Como os brasileiros me assumiram, me aceitaram como um deles? Nos Estados Unidos está cheio de intelectuais africanos nas universidades, mas vocês não vão encontrar um intelectual africano que discuta a questão do negro nos Estados Unidos. Eles falam sobre a África. Aqui eu fui incluído, aceito não como estrangeiro, mas como um deles. Como estrangeiro não seria membro do Conselho de Participação da Comunidade Negra do Estado de São Paulo. Fui chamado para integrar o conselho da Seppir, desde a administração de Matilde Ribeiro até a sua, Nilma. São cargos de ocupação política, que poderiam me considerar como estrangeiro, mas vocês me incluíram e consideraram como um de vocês.

Tudo isso porque eu também não fiquei preso à academia. Entrei na academia através dos brancos, mas me aproximei do movimento social negro, me integrei, aprendi. Aprendi um pouco na academia e muito mais com o movimento social negro e estou tentando transmitir através da minha linguagem, do meio do meu olhar.

Estou desenvolvendo o que recebi do movimento social negro e dos intelectuais brancos de modo geral que trabalharam a questão dos negros, como Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso. Só tenho a agradecer.

Fonte: Fundação Perseu Abramo/Teoria e Debate Capa: Sergio Silva/FPA


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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