Terras Indígenas, Constituição e Marco Temporal, Não!
No Dia da Amazônia, celebrado em 5 de setembro, em cerimônia que contou com a presença das ministras Marina Silva (do Meio Ambiente e Mudança do Clima) e Sônia Guajajara (dos Povos Indígenas), da presidenta da Funai, Joenia Wapichana, o presidente Lula anunciou a homologação de duas terras indígenas:
TI Rio Gregório (no município de Tarauacá, estado do Acre, área de ocupação tradicional e permanente dos povos Katukina e Yawanawá) e TI Acapuri de Cima, na cidade de Fonte Boa, estado do Amazonas, caracterizada como de ocupação do povo Kokama.
A homologação, feita por decreto da Presidência da República, é o último ato antes do registro formal de uma terra indígena. Antes dela, as terras tradicionalmente ocupadas por populações originárias passam por um rigoroso procedimento demarcatório, definido pelo Decreto nº. 1.775, de 08 de janeiro de 1996, com as seguintes fases:
- Em estudo: Fase na qual são realizados os estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais, que fundamentam a identificação e a delimitação da área indígena.
- Delimitadas: Fase na qual há a conclusão dos estudos e que estes foram aprovados pela Presidência da Funai através de publicação no Diário Oficial da União e do Estado em que se localiza o objeto sob processo de demarcação.
- Declaradas: Fase em que o processo é submetido à apreciação do Ministro da Justiça, que decidirá sobre o tema e, caso entenda cabível, declarará os limites e determinará a demarcação física da referida área objeto do procedimento demarcatório, mediante Portaria publicada no Diário Oficial da União.
- Homologadas: Fase em que há a publicação dos limites materializados e georreferenciados da Terra Indígena, através de Decreto Presidencial.
- Regularizadas: Fase em que a Funai auxilia a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), como órgão imobiliário da União, a fazer o registro cartorário da área homologada, nos termos do artigo 246, §2° da Lei 6.015/73.
Além das fases acima listadas, segundo a Funai pode haver, em alguns casos, o estabelecimento de restrições de uso e ingresso de terceiros para a proteção de indígenas isolados, mediante publicação de Portaria pela Presidência da Funai, ocasião em que há a interdição de áreas nos termos do artigo 7°, do Decreto 1.775/96.
Outras Terras Indígenas Homologadas em 2023
As demarcações das duas terras indígenas fazem parte do reconhecimento de oito territórios em andamento. Em abril, o presidente Lula assinou a homologação da demarcação de outras seis — Arara do Rio Amônia (no Acre), Kariri-Xocó (em Alagoas), Rio dos Índios (no Rio Grande do Sul), Tremembé da Barra do Mundaú (no Ceará), Avá-Canoeiro (em Goiás), e Uneiuxi (no Amazonas).
Também no dia 5, Dia Internacional das Mulheres Indígenas, a Funai constituiu Grupo Técnico (GT) para realizar os estudos de natureza antropológica, etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, necessários para a identificação e delimitação da Terra Indígena Estirão, de ocupação dos povos Kulina e Jaminawa, localizada no município de Santa Rosa do Purus, no estado do Acre.
Desde o início do governo Lula, em janeiro de 2023, a Funai informa que já emitiu 32 portarias constituindo, reconstituindo e adequando GTs com vistas à homologação de a 28 terras indígenas no Norte (10), no Centro Oeste (4), no Sul (4), no Nordeste (5) e no Sudeste (5).
Segundo o MapBiomas (Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil), as TIs perderam apenas 1% de sua vegetação nos últimos 30 anos, em contraste com os 20,6% de supressão nas áreas privadas. Essas Tis armazenam cerca de 34 bilhões de toneladas métricas de carbono, equivalente a 14% do carbono armazenado em todas as florestas tropicais do mundo.
Entre 2000 e 2016, esses territórios perderam menos de 0,3% do carbono armazenado, enquanto outras áreas protegidas perderam 0,6% e áreas não protegidas sofreram perdas de 3,6%.
Os Povos Indígenas na Constituição de 1988
Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania;
Art. 3.º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 4.º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: III – autodeterminação dos povos;
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LV – Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Art. 20. São bens da União:
XI – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
- 2.º A faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
XIV – populações indígenas;
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
XVI – autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais;
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
XI – a disputa sobre direitos indígenas.
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
V – Defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
- 1.º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa brasileira de capital nacional, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
- 2.º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
- 1.º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
- 1.º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
- 2.º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
CAPÍTULO VIII Dos Índios
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
- 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
- 2.º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
- 3.º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
- 4.º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
- 5.º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
- 6.º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
- 7.º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3.º e 4.º. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
ADCT Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.
Brasília, 5 de outubro de 1988.
Ulysses Guimarães, Presidente
Mauro Benevides, 1.º Vice-Presidente
Marco Temporal, Não!
O que é o Marco Temporal? Marco temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal.
Quando surgiu a tese do Marco Temporal? Em 2019, a Advocacia-Geral da União usou este argumento no processo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, dos povos Macuxi e Wapichana, no estado de Roraima.
O que tese do Marco Temporal tem a ver com TI Ibirama Laklãnõ? Em 2003, no primeiro governo Lula, foi criada a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, mas uma parte dela, ocupada pelos indígenas Xokleng e disputada por agricultores, está sendo requerida pelo governo de Santa Catarina no Supremo Tribunal Federal (STF).
Qual o argumento do Governo de Santa Catarina? O argumento é que essa área, de aproximadamente 80 mil m², não estava ocupada em 5 de outubro de 1988.
O que diz o povo Xokleng? O povo Xokleng, apoiado por povos e entidades indígenas do Brasil inteiro, argumenta que a terra estava desocupada na ocasião porque eles haviam sido expulsos de lá.
Por que a votação do caso Xokleng é tão importante? A decisão sobre o caso de Santa Catarina firmará o entendimento do STF para a validade ou não do marco temporal em todo o País, afetando mais de 80 casos semelhantes e mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas que estão pendentes.
Como está o placar da votação no STF
Até o momento (12/09) quatro ministros votaram contra o Marco Temporal e dois votaram a favor da tese que limita os direitos ancestrais dos povos indígenas.
Votos contrários ao Marco Temporal: Até o momento (12/09), quatro ministros votaram com os indígenas, contra o marco temporal: Edson Fachin (relator); o relator, ministro Edson Fachin; Alexandre de Moraes; Cristiano Zanin; Luís Roberto Barroso.
Votos favoráveis ao Marco Temporal: Nunes Marques e André Mendonça.
Faltam os votos de: Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber.
Zezé Weiss – Jornalista, com informações disponibilizadas pela Assessoria de Comunicação da Funai (https://www.gov.br/funai/pt-br), do site oficial do governo federal (https://www.gov.br/planalto/pt-br/, do MDS https://www.mds.gov.br/ e da Agência Câmara de Notícias https://www.camara.leg.br/.
Imagens: EBC. Indígenas Yawanawa: Agência de Notícias do Acre.