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Vandana Shiva: Por um mundo sem venenos

Vandana Shiva: Por um mundo sem venenos – 

Há alguns anos, na 1ª Bienal do Livro de , eu mediei um debate entre a física nuclear e ativista indiana Vandana Shiva e o filósofo inglês John Gray, no auditório do Teatro Nacional. Na ocasião, criei com Vandana um elo de simpatia e havia marcado um novo encontro com ela agora, no seminário “Agrotóxicos, Impactos Socioambientais e Direitos Humanos”, realizado no início de dezembro último, em Cidade de Goiás (GO), onde ela faria a palestra de abertura…

Por Jaime Sautchuk 

De última hora, porém, ela mandou uma pequena fala em vídeo, explicando que não poderia vir e se desculpando. Uma pena, pois sua presença é sempre animadora, e havíamos marcado um encontro pra que eu montasse esta matéria. De todo jeito, mesmo à distância, foi possível atualizar posições, de modo a trazer aos estimados leitores e leitoras um quadro do que pensa e faz essa incansável militante contra o Cartel do Veneno, por um mundo mais saudável.

Com perto de 70 anos de idade, Vandana continua a mesma multimilitante. Física de origem, mas um pouco antropóloga ou etnóloga, um pouco de tudo com que possa combater o modelo econômico que se fortalece no mundo, em especial na agricultura. O que tem mudado um bocado (pra pior) é a realidade ao redor do planeta em que vivemos.

Sua formação acadêmica se deu em universidades da própria Índia, do Canadá e dos Estados Unidos. Mas ela prefere se dizer “formada na universidade da ”, numa referência à sua proximidade com movimentos populares, em particular dos camponeses de seu país.

Sua farta obra, com cerca de 40 livros publicados, centenas de artigos, palestras e propostas de lutas, há décadas granjeia simpatizantes mundo afora. “Estar ao lado dos últimos”, título de um de seus livros, expressa bem seu sentimento de combate à ganância, à prepotência e ao descompromisso daqueles que levam a Humanidade pelo caminho da autodestruição.

Os “últimos” são aqueles que foram privados pela força de usufruir dos bens que são comuns, mas estão sendo apropriados por poucos. Os mesmos que desprezam a Natureza e se lixam para um futuro de harmonia entre os humanos e o meio em que vivem.

MENSAGEM CÂMARAS DE GÁS

Em um VT de cinco minutos que enviou à organização do seminário em Goiás, Vandana expôs as colocações que faria no encontro. Esta é a íntegra da mensagem:

“Queridos amigos latino-americanos, nos unimos para o Seminário Internacional de Agrotóxicos, Impactos Ambientais e Direitos Humanos. Eu estava tão ansiosa para estar com vocês pessoalmente, mas por várias razões isso foi impossível.

Agora eu me junto a vocês através desta mensagem com a mais profunda solidariedade, com um propósito em comum de que não deixaremos os nossos direitos humanos serem pisoteados, nós não deixaremos nossa democracia ser destruída e não deixaremos a democracia da terra ser pisoteada.

Relatórios após relatórios mostram que existe uma janela aberta para fazermos a mudança de uma tóxica, com uma agricultura baseada em agrotóxicos para a agroecologia, deixando a diversidade das espécies prosperar.

Minha jornada contra os agrotóxicos começou com o desastre de Bhopal, em 1984; no mesmo ano, no próspero estado de Punjab, onde fi z meu mestrado em Física, 30 mil pessoas foram mortas em atos de violência, sendo que milhares morreram na noite de 2 de dezembro de 1984.

Até hoje crianças em Bhopal nascem com todos os tipos de malformações congênitas, assim como as crianças argentinas na primavera de Roundup. Isso é uma extrema violação de direitos humanos e não foi um acidente.

Até mesmo em Punjab, onde há tantos pesticidas sendo espalhados, agora há um tratamento para câncer e deram a Punjab um Prêmio Nobel da Paz por introduzir toxinas na agricultura. Quando escrevi o livro sobre a Revolução Verde para as Nações Unidas, eu fi z uma pesquisa: de onde vieram os pesticidas?

E descobri que vieram das câmaras de gás. Essas são as empresas que fazem produtos químicos para matar pessoas e suas não são incidentes. De acordo com o relator das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos à alimentação, todos os anos, duzentas mil pessoas morrem por envenenamento de pesticidas agrícolas, mas isso não conta com as crianças que nascem com malformações congênitas, não conta com as vítimas de câncer, não conta com todos os problemas e doenças, inclusive as crônicas que são o resultado do uso de pesticidas.

O pequeno grupo de empresas que se especializaram em fazer produtos químicos para matar, dizendo que nós não teríamos comida sem isso e que o mundo passaria fome, os quais usam constantemente o problema da fome como uma justificativa para a propagação de veneno na nossa comida e em fazendas, eu os chamo de ‘o cartel do veneno’, pois são um punhado de empresas.

Agora a Bayer comprou a Monsanto, enquanto a Syngenta se fundiu com a ChemChina e a Dow com a Dupont, formando um cartel de três envenenadores, os quais são responsáveis por todas as mortes no planeta por veneno. Eles são responsáveis por todas as violações da democracia e por desfazer todas as leis que colocamos por segurança.

Nós lutamos, mas não paramos. Segurança é o nosso direito de nascimento, nosso direito humano. É por isso que colocamos em leis, para controlar os Organismos Geneticamente Modificados (OGM). Eu estava no painel de exportação de biossegurança, para contornar a estrutura do protocolo de Cartagena da diversidade biológica convencional. A regulamentação dos últimos 20 anos tem basicamente acabado com os direitos básicos das pessoas à justiça econômica, social e aos direitos humanos.

Isso permitiu que 5 bilionários tivessem o controle de metade da economia mundial e que esses bilionários, que não tinham nada antes de 2008 e antes do colapso de Wall Street, através de investimentos de bens agrícolas, como a Vanguarda e Blackrod, agora sejam os maiores acionistas no cartel do veneno. Sendo assim, quando pensamos em quem está descumprindo nossas leis, matando nossas crianças, nós precisamos pensar nesses bilionários e fazê-los prestas contas.

Isso são os direitos humanos e a luta da democracia atual. Claro que temos que ser imensamente criativos, mas se as crianças conseguem fazer greve para garantir que a mudança climática não feche seus futuros, nós devemos ser criativos e começar a garantir que mais do que hoje, ano que vem seja um levante contra o cartel do veneno.

Nós devemos trabalhar para criar um mundo sem veneno até 2050, um compromisso que nós de Navdanya tomamos e convidamos cada um de vocês para fazer parte deste movimento para nos libertarmos dos venenos, para nos liberarmos do cartel do veneno e de todos os agrotóxicos.

Se junte ao movimento no website Seed Freedom. Nós somos uma família da Terra, nós somos uma humanidade em um planeta. Nós não iremos mais lidar com fantoches individualistas, que foram colocados pelo cartel do veneno para desfazer as leis e nossos direitos.

Nós iremos nos unir em um só, não como uma única comunidade, mas também com as milhões de espécies que são parte desse novo levante, e nós seremos o futuro. Um futuro de democracia para os humanos e para a Terra, democracia para nossa vida. Juntos para esse novo futuro nós vamos trabalhar e queremos que as tiranias saibam que todas as tiranias são passageiras e a vida continua.”

SEMENTES

Em outra vinda ao Brasil, na 5.ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, em novembro de 2015, Vandana Shiva realçou o debate sobre as sementes, demonstrando que um pequeno grupo de empresas tenta controlar a alimentação da Terra.

Esse é um tema muito importante no Brasil, onde a agricultura predatória toma conta da maior parte do país. O plantio extensivo de grãos, especialmente soja e milho, tem forte impacto socioeconômico. Num processo semelhante ao que ocorre na Índia, Rússia, Ucrânia e em outros grandes produtores. Este é um resumo de suas colocações:

“Irmãos e irmãs do Brasil, é uma alegria estar aqui com vocês e testemunhar a democracia alimentar em funcionamento, porque é isto que vocês estão fazendo. Quando eu vi o lema da Conferência ‘comida de verdade no campo e na verdade’, senti uma profunda ressonância, porque isto é exatamente em que eu trabalho, em comida de verdade, cultivada por pessoas de verdade, atendendo às necessidades de todos.

Nós temos a predominância de uma agricultura que não é um sistema alimentar. Não é um sistema alimentar porque não está atrelado à nutrição. Não está atrelado à nutrição do solo, é baseado na depredação do solo e por isso 75% dos solos do mundo são degradados, desertificados, poluídos. É um roubo da riqueza dos nossos agricultores.

Agora, por cerca de 30 anos, tenho estado atenta à agricultura industrial e comecei, em 1984, por causa de um desastre terrível em Bhopal, onde o pesticida de uma indústria vazou e matou 3.000 pessoas imediatamente e 30.000 desde então – além de centenas de milhares de crianças nascendo com deformidades até hoje, mais de 30 anos após o vazamento do gás.

Não chamo Bophal de um desastre, nem de um acidente, porque todas as agrotoxinas, todos os pesticidas agrícolas têm suas origens em guerras, eles foram criados para matar pessoas. Eles começaram como gases venenosos e gases neurotóxicos a serem utilizados nos campos de concentração ou na própria e, quando as guerras acabaram, aqueles que tinham se acostumado a vender venenos como armas químicas de guerra, apenas os remodelaram como agrotóxicos e mudaram totalmente a agricultura, criando falsas crenças de que sem agrotóxicos não podemos cultivar alimentos.

Agora argumentam que sem OGMs (Organismos Geneticamente Modificados) não podemos cultivar alimentos, sem corporações não podemos cultivar alimentos, mas as corporações não nos trazem alimentos. Elas nos trazem tóxicos, elas nos trazem venenos, doenças, elas nos privam de nossos nutrientes.

O primeiro nível no qual a nutrição nos é privada. A comida se torna irreal, nos privando da diversidade. Enquanto eu estava aguardando, me serviram um suco, o qual não reconheci, e é assim que deveria ser ao redor de todo o mundo, porque a natureza nos deu tanta diversidade e, em qualquer parte do mundo, há uma riqueza de culturas alimentares locais baseada na diversidade cultural.

Nós costumávamos comer mais de 10.000 espécies de plantas. Hoje, a única coisa que tem sido cultivada e propagada são culturas de quatro OGMs, até mesmo o arroz e trigo têm sido deixados de lado. Milho, soja, canola e algodão. Por que eles estão se espalhando? Porque a única razão pela qual temos OGMs é para que as empresas possam coletar royalties.

Eu estava na reunião onde uma senhora honesta duvidou, em 1987, antes da existência de OGMs no mundo. Eles disseram ‘nós devemos ter OGMs, porque não podemos fazer dinheiro sufi ciente vendendo substâncias químicas agora, mas se convencermos os agricultores a comprarem semente, nossos lucros serão ilimitados’. E o objetivo era fazer com que todo agricultor comprasse semente para qualquer estação ao redor do mundo. Este foi o dia em que eu me comprometi a trabalhar em prol da liberdade das sementes e da liberdade dos agricultores.

Isso foi quando comecei Navdanya e nós criamos 1.020 bancos de sementes comunitários na Índia, mas não apenas 1.020 bancos de sementes comunitários, nós também temos resistido a toda lei que retira os direitos fundamentais dos agricultores, de poupar, trocar sementes, e o direito dos consumidores.

Comida de verdade somente vem de sementes de verdade e a semente de verdade possui três qualidades. Primeiro, é renovável, se reproduz, se multiplica. Uma semente pode se tornar dez sementes, ou cem sementes, ou um milhão de sementes. As famílias de cultivo que eu adoro, os milhetos, são considerados grãos inferiores na literatura agrícola, mas eles são muito mais nutritivos.

Nós poderíamos ter 400 vezes mais alimentos no mundo se nós estivéssemos cultivando milhetos, a razão pela qual eles são chamados milhetos, é que uma semente gera um milhão de sementes. Isto é o que é comum também, os fi nger millets, banyard millets e os hostile millets. E eles são tão resistentes à seca que, com algumas poucas gotas de chuva, eles nos fornecem alimentos. Sem irrigação, sem agrotóxicos, generosidade do mais alto nível.

A segunda qualidade da semente de verdade é que ela proporciona nutrição. Afinal de contas, nossos ancestrais não estavam reproduzindo sementes sem pensar no quanto de qualidade, sabor e nutrição eles estavam adicionando à comida. E este é o brilhantismo dos agricultores indianos, transformando uma gramínea em duzentas mil variedades de arroz.

Nos nossos bancos de sementes, já armazenamos mais de quatro mil variedades de arroz – arroz vermelho, arroz roxo, arroz negro, arroz aromático e arrozes que podem tolerar uma inundação e crescer até 18 pés de altura e podem tolerar o sal quando os ciclones chegam. E 70% dos nossos arrozes crescem sem irrigação, eles são alimentados pela chuva. Então toda essa conversa de arrozes como a principal causa de gases do efeito estufa é parte de uma tentativa de exterminar nosso cultivo de arroz, porque todo o cultivo de arroz está nas mãos de pequenos agricultores em várias partes do mundo.

E a terceira qualidade das sementes de verdade produzidas por agricultores de verdade é a resiliência. Nós não as reproduzimos para a vulnerabilidade. Nós não as reproduzimos de uma forma que uma seca venha e as plantações sejam devastadas ou de modo que uma chuva inesperada colapse as plantações.

Nesta última estação, na época da colheita, nós tivemos chuvas inesperadas na Índia, e agricultores me chamaram de várias partes da Índia para falar – eles todos me chamam de irmã mais velha, tenho idade sufi ciente para ser a irmã mais velha de todos agora – e eles falaram: – ‘Deedee, nós utilizamos sementes antigas, fizemos agricultura orgânica, nossas plantações não sofreram danos. E todas as variedades da revolução verde, com fertilizantes químicos e vulnerabilidade foram devastadas’.

 

Quando sua diversidade se vai, seus nutrientes se vão. Primeiro, porque precisamos de diferentes plantações nos campos para que seja sustentável e precisamos de uma variedade de plantações para nos proporcionar uma nutrição equilibrada. Mas a agricultura química, a agricultura industrial, é baseada no que chamo de monocultura da mente. Produtos químicos oriundos da guerra tiveram que ser utilizados na agricultura.

Quando são utilizados na agricultura, você não pode ter vinte tipos de plantações em um mesmo solo, você precisa ter uma plantação adaptada para aquele agrotóxico para que as monoculturas e a utilização de agrotóxicos caminhem na mesma direção. É por isso que a agricultura industrial acaba com a nossa diversidade e, com ela, acaba a nutrição.

Mas mesmo dentro das próprias plantações, nos roubam de nossa nutrição. Então a revolução verde foi primeiramente trazida para a Índia em 1965-1966. Hoje Punjab está em chamas. Estava em chamas em 1984, o que foi a segunda razão que me chamou atenção para a agricultura, e está em chamas novamente, porque 80% do algodão biologicamente modificado foi devastado pelo ataque de uma mosca branca, que nunca foi uma praga do algodão antes da modificação genética.

Então, quando eu estava viajando há dez anos atrás de Madya Pradesh, eu disse a eles para guardarem o seu trigo e cultivarem orgânicos, e acharem seus próprios mercados, sem depender dos mercados globais, os quais só podem comercializar commodities e estas commodities não alimentam ninguém.”

PEQUENA PROPRIEDADE

“Mais de 70% dos alimentos que comemos, mesmo hoje, vêm de pequenos agricultores e pequenos agricultores utilizam apenas 30% da terra. A agricultura industrial, que está ocupando terras na Amazônia, nas savanas da Argentina, essa agricultura produz apenas 30% dos alimentos que comemos. E do milho e da soja que têm sido geneticamente modificados em nome da alimentação mundial, apenas 10% vão diretamente para a alimentação humana – 90% do milho e da soja geneticamente modificados vão para os biocombustíveis e para a alimentação animal.

E mesmo enquanto esta conversa de que somos primitivos acontece, de que nossas sementes são primitivas, nossas culturas alimentares são primitivas, e deveriam ser substituídas por comida sem qualidade e comida envenenada, as mesmas empresas roubam nossos preciosos grãos.

Precisei lutar contra a Monsanto, porque ela patenteou nossas antigas variedades de trigo. Muito se tem falado hoje em dia sobre alergias ao glúten do trigo, muitas pessoas são alérgicas ao trigo hoje em dia, mas o trigo por si só não causa alergia. É a reprodução industrial e o processamento industrial que está levando às alergias ao glúten.

Uma vez que o só se interessa por lucros da venda de insumos caros, agora incluindo sementes, e comprando commodities baratas, para maximizar suas margens de lucros e ter mais controle sobre nossos alimentos e nossas vidas, eles não estão preocupados com a nossa saúde.

De fato, eles ficam felizes se nós ficamos doentes, porque as mesmas empresas que nos trouxeram armas químicas se tornaram a indústria agroquímica, se tornaram a indústria da biotecnologia e engenharia genética, mas as mesmas empresas são também a indústria farmacêutica. Então Syngenta vende sementes e nos vende venenos como a Novartis. Depois que eles nos causam câncer, o fardo do câncer na Índia sozinho hoje, custa trezentos bilhões de dólares, suportado por pessoas pobres. Trezentos bilhões de dólares!

O braço farmacêutico da Syngenta é a Novartis. Eles até tentaram processar o governo da Índia ao dizerem ‘você que tem que mudar suas leis de patentes para que possamos ter o monopólio e vender os medicamentos que hoje são vendidos por 10 mil rupias por um mês de tratamento, por 250 mil rupias’.

E quando nossa corte disse ‘mas você está falando em deixar as pessoas morrerem?’, o advogado da Novartis disse: – ‘para nós só 15% da Índia importa, pois são os 15% que podem pagar estes altos preços’. Então infere-se do pensamento deles um ecocídio da diversidade do planeta, é por isso que eles não se importam que abelhas estejam desaparecendo, eles não se importam para onde todos os organismos estão indo. Eles não se importam se as pessoas ficam doentes e morrem.

Contanto que eles consigam ganhar dinheiro, eles o farão e se você não tiver o dinheiro, está tudo bem, porque extermínio é a lógica do sistema. Esses químicos quando começaram em guerras, a ideia era exterminar os outros. Os outros então eram os judeus ou o inimigo do outro lado da fronteira.

Hoje, o extermínio é de todas as espécies, quando você pensa no jeito que eles falam sobre insetos, sabe, nós temos uma linda fazenda de conservação, onde guardamos nossas sementes e ensinamos, e eu me sinto muito feliz, porque todo ano há mais insetos amigos, que vêm por conta própria – maravilhosas aranhas e joaninhas – que estão fazendo o trabalho deles no controle de pestes.

E não é somente alimentos e nutrição que produzimos mais, e nós não medimos rendimento por acre, porque rendimento é uma medida de commodities que vão para o mercado. Nós queremos ver o quão saudável são nossos alimentos, e em nutrição por acre, as propriedades ecológicas têm performance muito melhor, e propriedades industriais são muito, muito empobrecidas.

Eles estão produzindo commodities tóxicas e nutricionalmente vazias. E com a combinação de esvaziamento da nutrição, adição de tóxicos, e ainda adicionando coisas que nunca foram alimento em qualquer outra cultura, temos uma nova forma de adulteração da nossa comida, a criação de comida de mentira, comida falsa, pseudo-comida, que é a razão da sua conferência sobre comida de verdade, significativa não somente para vocês no Brasil. É significativa para o mundo.”

MODIFICAÇÃO GENÉTICA

“A palavra adulteração vem do termo latino adulterare, que signifi ca poluir ou corromper, o que signifi ca que nossa comida está sendo corrompida e poluída. Está sendo corrompida e poluída com agroquímicos que não pertencem aos alimentos, sendo corrompida com traços de OGMs, promotores virais, antibactericidas, além de marcadores de , toxinas BT, resistência a herbicidas.

Isso tudo não pertence aos alimentos, mas o mais significativo, os novos produtos que estão sendo impostos em nome da alimentação, são as bases para a epidemia de doenças que estamos enfrentando. Tome como exemplo o substituto para o açúcar: a Índia é o lugar da cana-de-açúcar, foi lá que a cana-de-açúcar foi inicialmente domesticada. Lá nós aprendemos a fazer açúcar. Fervendo o suco da cana-de-açúcar se produz um açúcar mascavo maravilhoso, como um caramelo. Depois você pode processá-lo um pouco mais, torná-lo branco, sempre com ingredientes ecológicos.

Então primeiro eles trouxeram o açúcar branco, refinado, como se a negritude fosse um problema e eles criaram um açúcar envenenado. E agora eles estão levando isso a um outro nível, com esse produto químico que nunca existiu, no mundo ou em nossos corpos, chamado xarope de milho rico em frutose, que está em todos os alimentos agora. Está em todos os refrigerantes.

A Coca-Cola aumentou seus lucros porque ele custa quase nada e para nós é um desastre, porque afeta nosso de duas maneiras: bombeia insulina, que leva ao problema da diabetes, promove o estoque de gordura e suprime a leptina que é um regulador de apetite que nos diz ‘você já comeu o suficiente’. E pela supressão do seu funcionamento e da nossa resposta, ele nos faz pensar que estamos com fome. Então nas crianças ele realmente leva ao vício e por isso o adicionam até mesmo em alimentos salgados, porque a criança então quer mais e mais, porque causa dependência.

Esta é a maior razão para o aumento da obesidade, juntamente com as gorduras trans etc. Em 2008, o International Journal of Obesity disse ‘o aumento da obesidade ocorreu exatamente de mãos dadas com a introdução deste açúcar falso chamado xarope de milho rico em frutose’.

Então um dos maiores desafios que vocês terão com a comida de verdade será tirar o xarope de milho rico em frutose fora do sistema alimentar. E o caminho para isso é, porque estas corporações são tão poderosas, o caminho para isso é de baixo para cima, o que o seu movimento é. Façam os conselhos dizerem ‘nós não aceitaremos comida com xarope de milho rico em frutose’.

Promovam os alimentos locais produzidos pela agricultura familiar. Meu sonho é que todas as sementes venham de agricultores, que são melhoristas brilhantes e nós oferecemos cursos participativos para agricultores sobre reprodução.

E vejam o fardo das doenças. Parte dos resultados da desestabilização do nosso metabolismo é o aumento de diabetes. Globalmente, em 1985, havia 30 milhões de pessoas. Este número aumentou para 135 milhões e está projetada para ser 380 milhões de pessoas pelo ano 2025, levando a 4 milhões de mortes. Agora há muitas narrativas falsas em torno disso dizendo ‘por causa da globalização, sociedades que não tinham acesso aos doces e óleos estão agora tendo acesso e por isso estão se tornando obesos’.

Todas as culturas tiveram seus próprios óleos de cozinha, todas as culturas tiveram seus próprios adoçantes, eles vinham da natureza, eram processados artesanalmente. E apenas 500 anos atrás a Bula Papal de 1493 disse ‘vão, conquistem qualquer terra que não é branca, que não é cristão, que não tem reis e rainhas da Europa, apropriem-se em nosso nome’.

Essa foi a base de como o mundo foi tomado dos seus habitantes originais e a lei que surgiu a partir daí, a jurisprudência era chamada Terra Nullius, ‘assumam que os povos dessas outras culturas não são pessoas, somente assumam que eles não são completamente humanos. É uma terra vazia porque eles não são completamente humanos e você pode tomá-las’.

Da mesma forma, há uma tentativa hoje em dia de fazer parecer que nossa biodiversidade, nossas culturas alimentares, nossos conhecimentos não existem. Eu chamo isso da tese de Bio Nullius, que até que os tóxicos das corporações globais cheguem, não há nada, e esse é um desafio da comida de verdade, recuperar nossa diversidade biológica e cultural.

Há outra narrativa falsa. Eu realmente não gosto da expressão ‘estilo de vida’. Quem seria tão insensato em adotar uma dieta com comida ruim carregada de doenças, quando tem opções boas de comida? Isso não é uma escolha de estilo de vida, é uma imposição.

Há apenas 500 anos nós tivemos uma colonização, hoje temos a colonização pela comida. E pelo menos na minha terra eu sei, a Índia foi colonizada através do tratado de livre comércio de 1711, imposta pela East Índia Company. Hoje os tratados de livre comércio são o método de colonização. Patenteando sementes, a Monsanto escreveu as leis e começou a coletar royalties dos nossos agricultores e dos seus agricultores.”

NOVA COLONIZAÇÃO

“Seus agricultores tiveram um caso contra eles, 2,2 bilhões de dólares de coleta injusta de royalties. Eu tive muitos casos na Índia. Eles estão coletando royalties tão altos, eles aumentam os custos das sementes 8.000 vezes e tornam as sementes não renováveis. Agricultores estão endividados. Trezentos mil agricultores indianos cometeram suicídio, por causa das armadilhas de débitos criadas pelos monopólios.

 

E é por isso, Maria (Emília), que você falou sobre as sementes terminator e clamou pela manutenção do banimento, que é um banimento internacional, e não pode ter o Brasil subvertido. Eu te apoio totalmente, porque não se pode ter um Brasil livre da fome enquanto se apoia a tecnologia nas mãos da Monsanto. A patente do terminator é da Monsanto. Isto causará fome no mundo todo.

Se os agricultores estão cometendo suicídio porque estão pagando royalties tão altos para comprar sementes a cada ano, quando sementes verdadeiras poderiam ser guardadas na propriedade, trocadas livremente, nos fornecerem comida de verdade. Um teste do comprometimento do governo brasileiro com o Fome Zero é de não permitir a tecnologia terminator, não impor a tecnologia terminator para o mundo. Porque o que poderia ser mais contra a vida? O que poderia ser mais contra vida do que a ideia de que você tem que matar os renovadores da vida? Terminator significa matar a fertilidade das sementes de se auto renovarem, torná-las estéreis. Isto é o ecocídio derradeiro, injusto, ética e moralmente, mesmo se não houvesse consequências econômicas.

Eu diria que, como seres morais, nós devemos dizer não à tecnologia terminator. E existem outras coisas que precisam sair de sua convenção, um desafio às falsas soluções que estão chegando tão rápido. As mesmas empresas que nos fornecem alimentos nutricionalmente deficientes, sistemas agrícolas e sistemas de processamento que roubam a nutrição de nossos alimentos, querem agora nos empurrar a biofortificação através da engenharia genética.

Duas das maiores campanhas estão sendo moldadas. Por 15 anos, o absurdo do arroz dourado, modificando o arroz através de engenharia genética para torná-lo um pouco amarelo, quando uma colher cheia de chutney de coentro pode fornecer toda a vitamina A de que necessito; quando nossas folhas de amaranto nos fornecem mais vitamina A e nossas folhas de coentro e da surpreendente árvore de moringa, 300 a 400% mais vitamina A, além de outros nutrientes, sabor e qualidade.

 

Esse projeto não vingou. Falhou na Índia, foi rejeitado por camponeses nas Filipinas, mas agora, infelizmente, a Fundação Gates está financiando os ensaios e a comercialização, está sendo conduzido pela porta dos fundos através da pequena Bangladesh. Isso é um ato criminoso.

Se eles estão comprometidos em remover as deficiências nutricionais, que entreguem dinheiro às comunidades locais, para criar hortas em todos os lugares, mulheres para ressuscitar seus conhecimentos sobre biodiversidade e nutrição, também para termos hortas em áreas urbanas, mas não somente áreas urbanas, porque o campo sempre será o principal produtor de alimentos.

Diversidade é a resposta para a subnutrição. Comida de verdade nas mãos de gente de verdade, e soberania de conhecimento junto com soberania das sementes e soberania alimentar são as respostas à subnutrição, mas não somente à subnutrição, à epidemia de doenças também. E a epidemia de doenças, sim, a obesidade é parte disso, mas o câncer é parte disso, a hipertensão é parte disso, doenças cardiovasculares são parte disso, porque estão desregulando os processos regulatórios no nosso corpo.

Este corpo é um sistema impressionante que se auto-organiza, como todos os seres vivos, como todo indivíduo vivo, como toda cultura viva se auto organizam. E, como auto-organizados, eles sabem bem o que querem absorver e o que não querem absorver, que é a razão por que os chilenos criaram os termos ‘sistema autopoiético’ e ‘sistema alopoiético’.

Os sistemas autopoiéticos são os que se autogovernam, os alopoiéticos são aqueles controlados de fora. Nós hoje temos uma competição entre a comida se tornando uma arma, comida se tornando fonte de controle. Kissinger disse isso na Guerra do Vietnã: comida é uma arma. E eu digo que levo isso mais a fundo, e que agora eles querem usar as sementes como arma para controlar as pessoas.

Nós seremos livres, porque a liberdade é muito preciosa e a liberdade é o que nos dá nossa cultura, nos dá saúde e nos dá nossos meios de subsistência, e não vamos permitir que a liberdade seja definida pelas corporações através de acordo de livre comércio, onde a Monsanto escreve as leis de propriedade intelectual, a Cargill escreve os acordos de agricultura, e os processadores que falam sobre valor agregado, enquanto é valor roubado, falam de medidas sanitárias e lutam por medidas sanitárias, as normas de saúde. Sua próxima tentativa desesperada será criminalizar nossas liberdades.

Construí o Navdanya a partir de 1987. Os últimos dois ou três anos têm sido gastos trabalhando com agricultores e cidadãos através do mundo para defender sua liberdade de sementes, visto que as corporações tentam escrever leis para tornar as sementes locais ilegais. Estou muito feliz que a presidenta falou sobre 480 bancos de sementes comunitários. Espero que se tornem um milhão de bancos de sementes comunitários, porque é disso que precisamos. E onde quer que nos tornemos atentos no tempo para expor as más intenções de destruir a diversidade que alimenta o mundo, as leis têm que ser revogadas. Aconteceu na Índia, na Europa, na Colômbia, em qualquer lugar onde o povo lutou contra as leis de sementes que tornam as sementes ilegais, e as leis malucas de segurança alimentar que tornam a comida artesanal ilegal.”

ÓLEOS SAUDÁVEIS

“Em 1998, o lobby da soja tentou tomar o mercado de óleos comestíveis na Índia, que chamavam de ‘Eldorado da Soja’. E muito convenientemente eles conseguiram banir os óleos locais em nome da segurança, dizendo ‘se o óleo local foi feito em uma prensa a frio de azeite virgem em uma vila, ele é perigoso para sua saúde, mas a soja geneticamente modificada é maravilhosa’. Então tive que liderar a satyagraha da mostarda, porque as mulheres das favelas me ligaram dizendo ‘nós não podemos comer a comida cozida em soja, nossas crianças estão indo dormir chorando, você tem que trazer nosso óleo de mostarda de volta’.

Primeiro fiz um estudo, depois organizei. Trouxemos mostarda orgânica de nossas comunidades, arranjei um pequeno moinho extrator, levei para o Dilli Haat onde temos um café, liguei para o Ministro-Chefe de Delhi naquela época, Sahib Sing, e disse ‘quero te dar a primeira garrafa do nosso óleo satyagraha’. Sathya significa verdade; agraha é a luta pela verdade. Gandhi usou este termo várias vezes para lutar contra as leis injustas dos britânicos: satyagraha.

Seu trabalho para criar a comida de verdade no campo e na cidade é o satyagraha de hoje, contra o sistema alimentar brutal, injusto, não científico, desonesto e não democrático que está sendo imposto sobre nós. E quando nós todos unirmos as mãos eu sei que temos o poder de fazer a mudança para que todos, a última criança, a última , tenha comida de verdade. Muito obrigada!”

Jaime Sautchuk
Jornalista Escritor

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

revista 119

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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