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VLADIMIR CARVALHO: CINEASTA VELHO DE GUERRA

Vladimir Carvalho: Cineasta velho de guerra

Pouco tempo antes de completar 80 anos de idade, em vez de ganhar presente, Vladimir Carvalho doou sua casa inteira, com tudo o que há nela, que ele chama de Memorial do Brasiliense, à de Brasília (UnB). “É uma forma de retribuir o tanto que aprendi ali, mesmo na condição de professor”, afirma ele.

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Em sua casa, na histórica avenida W-3, na área mais central de Brasília, ele armazena documentos, equipamentos e fotos que contam a história do cinema na Capital e no Brasil. O museu hospeda peças raras, como a moviola em que montou o clássico “Terra em Transe” e milhares de outros itens. Além de cerca de três mil livros com temática cinematográfica.

Há alguns anos, quando filmou a história do escritor José Lins do Rego, Vladimir voltou à temática nordestina, como um guerreiro, um eterno militante do cinema. Assim, ele, que é o grande nome de Brasília no cinema, reencontra o homem nordestino, temática que o consagrou nacionalmente como cineasta.

Vladimir é a cara de Brasília, mas é, também, a mais pura imagem do Nordeste. Um autêntico candango, designação que originalmente se dava aos pioneiros que enfrentaram o poeirão do Cerrado pra construir a nova capital do País.

Essa dualidade, refletida em sua densa obra, confunde-se com sua própria trajetória pessoal. Uma trajetória em que vem tangendo sonhos e espalhando rastros desde a década de 1950, quando deixou o interior da Paraíba.

Conterrâneos Velhos de Guerra

O seu mais notável talvez seja Conterrâneos Velhos de Guerra, cuja versão final é de 1992, justamente porque une essas duas faces. É a saga da construção de Brasília, na visão dos operários, daqueles que não estavam nas páginas de jornais, nem nas festas da novíssima capital. E que eram, na maioria, nordestinos.

Os filmes de Vladimir têm o tom da denúncia, retratam realidades amargas, histórias duras, injustiças. Mas não ficam na superfície. Vão fundo, lá dentro da alma das pessoas cujo retrato nos mostra, e consegue fazer delas personagens de suas próprias vidas. Seus documentários parecem ficção.

Aliás, na juventude, quando lia e debatia a Revista do Cinema, editada em Belo Horizonte (MG), ele acreditava que o verdadeiro cinema era o de ficção. Até que, em 1956, numa viagem a Recife (PE), assistiu ao “Homem de Aran”, do legendário documentarista ianque Robert Flaherty. E mudou de ideia: poderia haver arte em documentários.

Essa descoberta ficou martelando em sua cabeça, mas ele seguia trabalhando como jornalista na imprensa paraibana. Até que, em 1960, foi protagonista de um dos momentos históricos do cinema brasileiro. Escreveu o roteiro do longa “Aruanda”, filme dirigido por Linduarte Noronha e tido como a obra que inaugurou o Cinema Novo.

Romeiros da Guia 

Ainda na Paraíba, já como diretor, em 61, rodou o curta “Romeiros da Guia”, que mostra uma romaria anual dos pescadores de João Pessoa. No ano seguinte, decidiu ir morar em Salvador (BA), e ingressou no curso de Filosofia, onde conheceu Caetano Veloso, seu colega de curso.

Salvador era um burburinho em todas as artes, mas em especial no cinema. Ali, havia um forte movimento, liderado por Glauber Rocha, de quem ele se tornou amigo. É certo que já chegava com “Aruanda” no currículo, o que o colocou na roda de imediato. Passou a integrar o Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE – secção Bahia.

O CPC resolveu fazer um filme sobre a morte de João Pedro Teixeira, um líder das Ligas Camponesas que havia sido assassinado. Era “Cabra Marcado Para Morrer”, que seria dirigido por Eduardo Coutinho, com Vladimir como assistente de direção.

O filme começou a ser rodado no Pernambuco, com apoio do então governador Miguel Arraes, mas foi interrompido pelo golpe de de 1964. Procurado pela polícia política, Vladimir entrou na clandestinidade, acoitando também a viúva do líder camponês cuja vida tentava documentar.

Passou bom tempo escondido em Campina Grande (PB), onde passou a ser conhecido como Zé dos Santos, por esculpir imagens  sacras em madeira, seguindo a verve artística de seu pai. Logo, porém, voltou à ativa.

Com nova parada em Salvador, e Vladimir foi pro Rio de Janeiro, onde foi assistente de direção em “Opinião Pública”, de Arnaldo Jabor, com quem trabalhou em outros filmes.

A Bolandeira

Em 65, voltou pra Paraíba e retomou o jornalismo, como meio de coletar matéria-prima para novos filmes. Filmou o curta “A Bolandeira”, sobre os engenhos de cana à tração animal, e começou a preparar seu primeiro longa solo, “O País de São Saruê”. Era a estética da levada pra tela, com uma carga de e realismo que incomodava as elites arcaicas.

Com poucos recursos financeiros, dificuldade que o persegue até hoje, Vladimir levou quase quatro anos pra chegar à versão final do filme, em 35 mm. A obra foi inscrita e programada para o Festival de Brasília de 1971, mas teve sua exibição proibida pelos poderosos de então, que apreenderam a película.

A essa altura, ele já morava em Brasília. No ano anterior, a convite do fotógrafo Fernando Duarte, ele foi parar na Universidade de Brasília (UnB), da qual virou professor. Eles recriaram o curso de Cinema, que ali existira, como o primeiro do Brasil, antes do advento da ditadura. No entanto, a empreitada durou apenas dois anos – mas o suficiente para iniciar a formação de gente como Tizuka Yamazaki, por exemplo.

A causa do fechamento era o tipo de produção que começava a nascer ali. Já no ano que chegou, Vladimir dirigiu “Vestibular 70”, documentário que revelava as injustiças que marcam o caminho da juventude brasileira à universidade. Nascia, porém, seu encantamento por Brasília – e ele resolveu colocar seu talento a serviço da reconstrução histórica e, assim, ajudar a construir a nova Capital.

Voltou-se às origens da ocupação do Brasil Central, filmando, em 74, “Vila Boa de Goyás”, um precioso curta sobre a antiga capital de Goiás. Em 79, dirigiu “Brasília Segundo Feldman”, reproduzindo, de modo criativo e forte, a obra do artista plástico Eugene Feldman. E “Perseghini”, relato de um massacre de operários praticado pela mal-afamada Guarda Especial de Brasília (GEB), na época da construção.

Há alguns anos, Vladimir concluiu o longa  “/68” (“Barra-meia oito”), que relembra os episódios de 1968, na UnB, com o cerco policial, prisões e violências. Este, como vários outros de seus filmes, foi premiado em inúmeros festivais e por entidades ligadas à defesa dos direitos humanos.

Entre as aulas na UnB, em disciplinas relacionadas com o cinema, que manteve por 30 anos, Vladimir insistiu em falar do Nordeste e fez vários outros curtas. Voltou à carga ao filmar, aos poucos, com paciência, a biografia de Zé Lins do Rego. E assim volta a Itabaiana (PB), onde nasceu, em 1935. Remexe o baú da e a sua própria história.

Seu pai, Luiz Martins de Carvalho, que morreu aos 39 anos, era moveleiro de ofício, artista plástico amador e comunista de carteirinha. Ele havia sido colega de escola de Zé Lins e, à noite, lia para os três filhos obras do amigo escritor. Vladimir herdou do pai a convicção política (“fui do Partidão desde ”, costuma dizer) e a paixão por Zé Lins.

Seu mais recente trabalho em longa-metragem, no entanto, é uma espécie de tributo à juventude brasiliense. O filme “Rock Brasília – A Era de Ouro” é um meticuloso bordado de filmagens que fez por duas décadas sobre a explosão roqueira da capital, no qual revela preciosidades como uma entrevista inédita com Renato Russo.

Por fim, ao doar seu lar-museu à UnB,  Vladimir Carvalho não chega a surpreender. É apenas mais um capítulo de uma vida de doação às causas populares, tendo o cinema como arma.

Publicado originalmente em 26 de abril de 2017

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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