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Lugares sagrados e paisagens da Terra Indígena Alto Rio Negro

Terra Indígena Alto Rio Negro: Lugares sagrados e paisagens

Alto Rio Negro: Lugares sagrados e paisagens – Mapeando lugares sagrados e paisagens da Terra Indígena Alto Rio Negro, Amazônia

Pesquisa colaborativa e intercultural lança coleção cartográfica de 12 mapas da região do Baixo Rio Uaupés, integrando a série Cartô Brasil Socioambiental…

Por Juliana Radler/ISA

Ocupações humanas, lugares sagrados e históricos, trilhas, paisagens e locais para manejo de peixes, da e da caça. São estes os pontos mapeados pelos pesquisadores indígenas do noroeste amazônico, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), em uma inédita iniciativa de cartografia social na região conhecida como “Cabeça do Cachorro”. O resultado são 12 mapas elaborados com desenhos e detalhes minuciosos feitos pelos índios de várias etnias.

Um dos mapas, que abrange todo o trecho do Baixo Rio Uapés, está disponível online e pode ser baixado aqui. O Baixo Rio Uaupés é considerado a porta de entrada da Terra Indígena Alto Rio Negro, a terceira maior em extensão territorial do Brasil — atrás apenas das TIs e Vale do Javari.

Mapa geral do Baixo Uaupés, com as áreas de manejo das 11 comunidades que participaram dos mapeamentos colaborativos

Os outros 11 mapas foram impressos e estão sendo distribuídos nas comunidades para uso das escolas, associações e lideranças indígenas, moradores, agentes de saúde e profissionais que atuam na região. Abaixo, suas capas.

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Geografia indígena

Os povos indígenas rionegrinos têm uma relação peculiar com as paisagens. Suas narrativas míticas e rezas xamânicas estão cheias de referências geográficas que traçam rotas e lugares especiais relacionados à origem do e de seus primeiros ancestrais, que chegaram no Alto Rio Negro em uma cobra canoa. lugares sagrados guardam ainda as memórias e os poderes criativos desses primórdios e fundamentam um complexo sistema xamânico de manejo do território e da .

Os conhecedores tradicionais dizem que muitos jovens, hoje, não conhecem esses locais sagrados e nem suas histórias, por isso desrespeitam regras importantes relacionadas ao uso do território, como não pescar e caçar em algumas dessas áreas. Os mapas são, portanto, uma maneira de transmitir esse conhecimento dos mais velhos para os mais jovens, valorizando a cultura tradicional e a história local, baseada na transmissão oral.

Além disso, o mapeamento participativo pode ajudar a mediar certos conflitos intercomunitários, muitas vezes causados pelo desrespeito aos limites das áreas historicamente reservadas ao manejo de caça, pesca e extrativismo pertencente a uma determinada comunidade. Tanto os indígenas quanto os assessores técnicos acreditam que esse colabora diretamente na gestão territorial e ambiental da terra indígena Alto Rio Negro, cujas comunidades estão elaborando seu Plano de Gestão Territorial e Ambiental(PGTA), com previsão de conclusão em 2019.

“Nossos ancestrais já traçavam os limites do nosso território. Daquela ponta até aquela ilha, daquela serra até aquele monte, tudo aqui tem nome e tem significado. Os antigos pescavam somente para o seu próprio consumo, para a troca com outros produtos como sal, sabão, fósforo e anzol. A pesca era feita só na sua própria área de ocupação. Mas, hoje, muitos não conhecem mais esses limites, principalmente os jovens e os parentes recém-chegados de outras regiões. Por isso esses mapas são bem importantes para a gente”, reflete a liderança indígena do Baixo Uaupés, Francisco de Assis Costa, da comunidade de Ananás.

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Oficinas de mapeamento de paisagens e áreas de ocupação das comunidades fizeram com que conhecimentos orais e mapas mentais fossem transformados em cartografia. Fotos: Aline Scolfaro e Aloisio Cabalzar/ISA.

Riqueza multiétnica

Em termos de diversidade étnica, o mapeamento também é extremamente valioso, uma vez que reúne diferentes etnias da região, como Tukano, Desano, Tariano e Piratapuya, predominantemente, além de comunidades com famílias Baniwa, Baré, Tuyuka, Siriano, Wanano, Hupdah, Arapasso e Kubeo.

As comunidades indígenas do Baixo Uaupés, rio que nasce na Colômbia (chamado por lá de Vaupés), foram formadas entre fins do século XIX e início do XX por clãs e famílias vindas de regiões distantes (rio acima); sobretudo do rio Papuri, importante afluente do Uaupés. Vale ressaltar que, depois do , o Uaupés é o segundo maior tributário do rio Negro.

“Foi um trabalho importante de reunir todo um conhecimento sobre o território que é oral-visual-mental-espiritual num outro veículo, mais tangível, que é o mapa. Conhecimentos que os índios possuem, que informam cotidianamente suas práticas, mas que não tinham ainda sido sistematizados, reunidos e apresentados desse modo”, afirma Aline Scolfaro, antropóloga do Instituto Socioambiental (ISA), uma das responsáveis pelas oficinas de cartografia social feitas nas comunidades indígenas.

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Oficina de cartografia na comunidade Matapi realizada no ano de 2014. Foto: Aline Scolfaro/ISA

Trabalho colaborativo

Envolvendo uma série de atividades de pesquisa e de formação, os pesquisadores conhecidos como Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAs) colocaram a mão na massa e fizeram um grande esforço de sistematizar todo um conjunto de conhecimentos cosmológicos, históricos e ecológicos sobre seu território e materializá-los nessa série cartográfica.

“A pesquisa e materialização nos mapas das toponímias, nome dos lugares e seus significados, em português e na língua tukano, foi riquíssima no processo, aumentando a lembrança e reconhecimento de lugares históricos e sagrados, assim como importantes referências dos igarapés, lagos, ilhas, pontas, cachoeiras e serras”, ressalta Renata Alves, ecóloga do ISA e co-organizadora da coleção, responsável pela parte de cartografia. “A iconografia do trabalho, isto é, a representação em desenhos próprios, usados nos ícones dos mapas também exigiu bastante conhecimento e dedicação dos artistas da rede de AIMAs”, completa.

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Legenda com desenhos feitos pelos Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aima) e alunos das escolas indígenas do Baixo Uaupés
Mapa da área de manejo de uma das comunidades com desenhos dos Aimas e alunos indígenas

A formação dessa rede de AIMAs do Baixo Uaupés, inspirada na experiência feita em outro rio da região, o Tiquié (onde foram lançados os primeiros mapas colaborativos e interculturais dessa coleção), foi vital para aproximar jovens e velhos conhecedores. Entre 2014 e 2016, foram realizadas várias oficinas de mapeamento com os AIMAs, tendo o ISA, Funai e Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), como parceiros nas atividades do Uaupés.

“Os conhecedores mais velhos foram fundamentais nesse processo, pois eles são os detentores dos mapas mentais do território, em sua dimensão física e espiritual. Grande parte do que foi mapeado foi plotado diretamente pelos índios sobre imagens de satélite e bases cartográficas da região. Mas alguns locais, como lugares sagrados, serras e trilhas antigas foram também registradas pelos AIMAs com aparelhos de GPS”, comenta Scolfaro.

A juventude indígena logo se engajou no trabalho de manejo ambiental. A ideia era mesmo que os jovens estivessem à frente das iniciativas de pesquisa e mapeamento e assumissem, com o tempo, a função de monitorar e até fiscalizar os territórios. Pois o Baixo Uaupés, por ser uma região com abundância de peixe e relativamente próxima da sede do município de São Gabriel, atrai muitos pescadores de fora que praticam ali a pesca predatória para depois vender o pescado na cidade.

“Depois que me tornei AIMA comecei a pensar em coisas diferentes do que pensava. Comecei a pensar em como defender nosso , nosso território e levar para a frente as políticas de defesa dos povos indígenas”, reflete Rosivaldo Miranda, jovem Piratapuya da comunidade de Açaí, no Baixo Uaupés.

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Cacuri, armadilha de pesca dos povos indígenas do rio Negro, instalada nas pedras da cachoeira de Ipanoré Foto: Aloisio Cabalzar/ISA

Além de ISA, FOIRN e Funai, as ações no Baixo Uaupés e a produção dos mapas contaram também com apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Fundação Rainforest da Noruega e Fundação Moore.

Cartô Brasil Socioambiental — É uma série de publicações cartográficas, aberta a parcerias e sem periodicidade regular, que pretende apresentar um panorama de algumas das principais questões socioambientais da atualidade sob diferentes perspectivas e recortes territoriais (país, biomas, bacias hidrográficas, municípios, estados, cidades e outros). A série traz mapas elaborados em linguagem comunicativa e acessível a públicos variados, em diversos suportes e formatos, e é mais um trabalho que parte da base de dados do ISA mantida desde a sua fundação, em 1994.

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Lugares sagrados e moradores das comunidades do Baixo Uaupés reunidos no encontro de manejo pesqueiro, em 2014 (foto: Arquivo FOIRN)

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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