OS NINGUÉNS: "OS QUE NÃO SÃO, EMBORA SEJAM"

OS NINGUÉNS: “OS QUE NÃO SÃO, EMBORA SEJAM”

Os Ninguéns

As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Por Eduardo Galeano

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.

Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

Eduardo Galeano, no livro “O livro dos abraços”. tradução Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2002

Fonte: https://www.revistaprosaversoearte.com/os-ninguens-eduardo-galeano/

Mais sobre Eduardo Galeano:
Eduardo Galeano (textos, vídeos, crônicas e contos)

Imagens: Portinari

Criança Morta (1944) – Capa.  Guerra e Paz (1952-1956)

LEIA TAMBÉM:

 
image processing20240304 190269 7jw7ke
Ammar Bouras (Argélia), 24°3′55″N5°3′23″E#2, 2012.| Crédito: Tricontinental

No Livro dos abraços (1992), Eduardo Galeano escreveu sobre as graves divisões que afligem o mundo

Queridas amigas e amigos,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
No dia 20 de fevereiro, a embaixadora dos Estados Unidos na Organização das Nações Unidas (ONU), Linda Thomas-Greenfield, cumpriu a terrível tarefa de vetar a resolução da Argélia que pedia um cessar-fogo em Gaza. Amar Bendjama, o embaixador da Argélia na ONU, disse que a resolução apresentada foi elaborada a partir de conversas entre os 15 membros do Conselho de Segurança da ONU.
Mesmo assim, foi solicitado a ele que adiasse a resolução, mas seu país se recusou. “O silêncio não é uma opção viável”, respondeu. “Agora é a hora da ação e a hora da verdade”. A Corte Internacional de Justiça (CIJ) em sua decisão provisória de 26 de janeiro, sugeriu ser “plausível” que as ações de Israel em Gaza configurem genocídio; nesse momento, a Argélia prometeu tomar medidas imediatas por meio do Conselho de Segurança da ONU.
Desde 7 de outubro, Israel matou quase 30 mil palestinos em Gaza, mais de 13 mil deles crianças. Desde a decisão da CIJ em 26 de janeiro para interromper o genocídio, Israel matou mais de 3 mil palestinos.
Depois de meses fugindo de uma suposta zona segura para outra, que Israel bombardeia em seguida, mais de 1,5 milhão de palestinos – mais da metade da população de Gaza – está agora presa em Rafah, o ponto mais ao sul da Faixa de Gaza e a região mais densamente povoada do mundo. Rafah, que tinha uma população de 275 mil pessoas antes de 7 de outubro, agora está sendo bombardeada por Israel.
Apesar dessa realidade sombria, a embaixadora Thomas-Greenfield disse que os EUA não poderiam apoiar a resolução de cessar-fogo porque esta não condenava o Hamas e porque supostamente prejudicaria as negociações em andamento para a libertação dos reféns israelenses. O embaixador da China na ONU, Zhang Jun, discordou, ressaltando que o veto “em nada difere de dar sinal verde para o massacre contínuo”. Somente “apagando o fogo da guerra em Gaza”, disse ele, “poderemos evitar que o fogo do inferno consuma toda a região”.

c7abebd457b103834c070347f9679d9e
Ala Albaba (Palestina), The Camp #21 [O acampamento n. 21], 2021. / Tricontinental

De fato, a declaração de Thomas-Greenfield no Conselho de Segurança da ONU veio junto com a tentativa de seu governo de fornecer 14 bilhões de dólares em ajuda militar a Israel. Desde 1948, quando Israel foi criado, os Estados Unidos forneceram mais de 300 bilhões de dólares em ajuda, incluindo um desembolso anual de 4 bilhões em ajuda militar (e as dezenas de bilhões em andamento desde 7 de outubro de 2023).
Quando o presidente dos EUA, Joe Biden, conversou com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, em 11 de fevereiro, em vez de criticar o genocídio, ele reafirmou o “objetivo comum de ver o Hamas derrotado e de garantir a segurança de longo prazo para Israel e seu povo”. O veto de Thomas-Greenfield não surgiu do nada.

a801028fc0c74b8ddeca8d44ab724064
Fuyuko Matsui (Japão), Scattered Deformities in the End [Deformidades dispersas no final], 2007. / Tricontinental

O veto foi usado no Conselho de Segurança da ONU quase 300 vezes. Desde 1970, os EUA têm usado esse poder mais do que qualquer um dos outros membros permanentes (China, França, Rússia e Reino Unido).
Muitos dos vetos dos EUA foram, primeiro, para defender o regime de apartheid na África do Sul, que começou no ano em que Israel foi fundado, e depois para defender Israel contra qualquer crítica. Por exemplo, 27 dos 33 vetos que os EUA exerceram desde 1988 foram em defesa das ações de Israel contra os palestinos.
Desde 7 de outubro, os EUA vetaram três resoluções na ONU para obrigar Israel a interromper seu bombardeio genocida (18 de outubro, 8 de dezembro e 20 de fevereiro).
Apesar de seu uso recorrente pelos EUA, a palavra “veto” não aparece na Carta da ONU (1945). Entretanto, o Artigo 27 (3) da Carta diz que as votações no Conselho de Segurança “devem ser feitas por um voto afirmativo de nove membros, incluindo os votos concomitantes dos membros permanentes”.
A ideia do “voto concorrente” é interpretada como o “direito de veto”. Durante décadas, a maioria dos países membros da ONU insistiu que o Conselho de Segurança da ONU não é democrático e que o poder de veto o torna ainda menos confiável.
Nenhum país africano ou latino-americano têm assentos permanentes no conselho, e os país com a maior população do mundo – a Índia – também não tem esse privilégio. Os P5 (Permanent Five, como são chamados) não apenas dominaram o Conselho de Segurança, mas também enfraqueceram a importância da Assembleia Geral da ONU, cujas próprias resoluções não têm poder de aplicação.

e86636097b2360290b851ec1d8dc04b2
Ana Sophia Tristán (Costa Rica), CO-VIDA, 2020 / Tricontinental

Em 2005, a ONU realizou uma Cúpula Mundial para avaliar as ameaças de alto nível à ordem mundial, na qual a então vice-presidente da Costa Rica, Lineth Saborio Chaverri, disse que o “direito de veto deveria ser eliminado em questões de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e violações maciças dos direitos humanos”.
Após essa cúpula, a Costa Rica juntou-se à Jordânia, Liechtenstein, Cingapura e Suíça para criar o Small Five (S5) e defender a reforma do Conselho de Segurança da ONU. Eles colocaram uma declaração na Assembleia Geral que especificava que “nenhum membro permanente deveria exercer um veto no sentido do Artigo 27, parágrafo 3, da Carta, no caso de genocídio, crimes contra a humanidade e graves violações do direito internacional humanitário”.
Mas isso não teve nenhum impacto. Após a dissolução do S5 em 2012, 27 Estados se uniram para criar o grupo Accountability, Coherence, and Transparency (ACT) [Responsabilidade, Coerência e Transparência], principalmente para reformar o “direito de veto”. Em 2015, o grupo ACT distribuiu um código de conduta especificamente sobre a ação da ONU contra violações graves do direito humanitário.
Até 2022, 123 países haviam assinado esse código, embora os três países que usaram o veto mais energicamente nos últimos anos (China, Rússia e EUA) não o tenham feito. Com o aumento das tensões que os Estados Unidos impuseram à China e à Rússia, é improvável que esses dois países – agora ameaçados de ataque pelos Estados Unidos – aceitem a dissolução do veto.
A Carta da ONU, o tratado mais importante do planeta, é uma tentativa de acabar com a guerra e garantir que toda vida humana seja valorizada.
E, no entanto, nosso mundo está fragmentado por uma divisão internacional da humanidade, segundo a qual a vida de algumas pessoas vale muito mais que a vida de outras. Essa divisão é uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e do instinto básico compartilhado por igualdade social.
A proteção das crianças na Palestina, por exemplo, é tratada com muito menos urgência do que a proteção das crianças na Ucrânia (como a correspondente da NBC News em Londres, Kelly Cobiella disse, os ucranianos não são refugiados de qualquer lugar: para ser franca… Eles são cristãos; são brancos”). Essa divisão internacional da humanidade se infiltra na consciência pública geração após geração.

6fa65cd0e85c6c305a91395014e41516
Benny Andrews (EUA), Trail of Tears [Rastro de lágrimas], 2005. / Tricontinental

No Livro dos abraços (1992), nosso amigo Eduardo Galeano escreveu um pequeno fragmento sobre as graves divisões que afligem nosso mundo e cravam uma estaca fria de ferro no coração de nosso sentido de humanidade. Esse fragmento é chamado de “Os ninguéns”:

As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos,
morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas
páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

Cordialmente,
Vijay.

* Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Editado por: Vivian Virissimo

 

Deixe seu comentário

UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

PARCERIAS

CONTATO

logo xapuri

REVISTA

💚 Apoie a Revista Xapuri

Contribua com qualquer valor e ajude a manter vivo o jornalismo socioambiental independente.

A chave Pix será copiada automaticamente.
Depois é só abrir seu banco, escolher Pix com chave (e-mail), colar a chave e digitar o valor escolhido.