A fé que move as águas
No começo de agosto, ribeirinhos do Vale do Juruá acompanham a procissão fluvial dde Nossa Senhora da Glíra, a santa que navega por um Juruá afetado pela crise climática, até a cidade de Cruzeiro do Sul. E a cada ano, a peregrinação é impactada pelo nível baixo do rio Juruá. Consequência de um clima em colapso que impacta o modo de vida tradicional das populações da floresta
Val Martins – dos varadouros de Cruzeiro do Sul
No dia cinco de agosto de 2024, as águas do Juruá se transformaram em um imenso tapete de fé com a Procissão dos Navegantes, que marcou a abertura do Novenário em honra à Nossa Senhora da Glória.
A procissão iniciou-se na comunidade ribeirinha São Leopoldo, descendo o Juruá até o porto de Cruzeiro do Sul. Com a imagem de Nossa Senhora da Glória a bordo, embarcações de pescadores, da Marinha e de outros devotos se reuniram para acompanhar a Santa navegando pelo Rio Juruá. Batelões, canoas, bajolas e catraias seguiam a imagem de Nossa Senhora da Glória no ritmo lento das águas do rio.
Nas praias e barrancos do manancial, a imagem da padroeira era saudada pelos fieis com atos de devoção. A procissão foi um momento de pedir proteção aos que navegam pelas águas barrentas deste imponente afluente do Solimões – um rio que representa a vida para milhares de famílias deste cantinho da Amazônia brasileira.
Por volta de cinco horas da tarde daquele cinco de agosto, no principal porto de Cruzeiro do Sul, e sobre a ponte da União, centenas de devotos aguardavam ansiosos pela chegada da Santa, que logo seguiria rumo à Catedral Nossa Senhora da Glória, onde seria realizada a missa de abertura do Novenário.
O tradicional Novenário de Nossa Senhora da Glória, ocorreu entre os dias 5 e 15 de agosto de 2024, e este ano teve como tema “Maria, ensina-nos a ser Família de Deus”. A festa, em honra à Santa padroeira da cidade, foi um espetáculo de fé e fortalecimento de laços familiares e religiosos.
Durante os onze dias, Cruzeiro do Sul viveu um clima de intensa espiritualidade. A programação foi marcada por missas, procissões, novenas e momentos de louvor. Às noites, as missas eram dedicadas a diferentes setores da sociedade e comunidades locais do Vale do Juruá e do entorno.
- A cada 15 dias, milhares de peregrinos vindos das mais diversas comunidades do Vale do Juruá participam da procissão pelas ruas e as ladeiras históricas de Cruzeiro do Sul – Foto: Val Martins
- A devoção à Nossa Senhora da Glória é uma herança cultural e espiritual das comunidades rurais e urbanas do Vale do Juruá. Uma tradição que se perpetua ao longo das gerações.
“Começou quando eu vinha pras novenas, pra procissão, e mesmo assim, os meus pais conversando comigo, dizendo, explicando para nós, desde criança, o valor de Nossa Senhora da Glória, a Santa milagrosa! Aí eu criei fé, né, e eu fico acompanhando”. É assim que responde seu José Aldemir, um senhor cativante, de 74 anos, quando pergunto a ele sobre quando começou sua devoção à Santa.
Seu Aldemir, é agricultor, “seringueiro e filho de seringueiro”, nascido no Rio Mirim, conta que levou duas horas e meia para chegar até Cruzeiro do Sul desde o Ramal do Taveira, localizado no vizinho município de Mâncio Lima.
“Pedi a ela que me desse saúde, felicidade, que eu me vinha, estava doente, para mim vir pra procissão com saúde. E hoje eu tô com saúde no meio do povão, né? Todo mundo me abraçando, alegre.” Relata ele, quando questionado sobre qual promessa ele já havia feito à “santa milagrosa”.
- O agricultor José Aldemir, que saiu de uma comunidade rural do vizinho município de Mâncio Lima para agradecer pela recomposição da saúde – Foto: Val Martins
- A cada ano, a procissão em honra à Nossa Senhora da Glória se consolida como um dos maiores eventos religiosos da região Norte. A grandiosa peregrinação, realizada no dia 15 de agosto é um dos momentos mais aguardados no novenário.
Este ano, mesmo com os desafios para se chegar até Cruzeiro do Sul por causa do nível crítico de vazante dos rios e igarapés acreanos, centenas de ribeirinhos e agricultores da região enfrentaram as dificuldades para renovarem seus votos e reafirmarem sua fé em Nossa Senhora da Glória.
É numa marcha lenta e iluminada pelas luzes das velas que carregam nas mãos, que milhares de peregrinos percorrem as ruas e as grandiosas ladeiras do centro de Cruzeiro do Sul. Nesta caminhada, a imagem da padroeira do Juruá, adornada com flores brancas e amarelas, é conduzida com reverência nos ombros de fiéis, enquanto cânticos são entoados pela multidão em um ato de fé e devoção.
No Morro da Glória, um dos pontos mais altos da cidade, dezenas de pessoas aguardavam a descida da Santa até a Catedral Nossa Senhora da Glória, símbolo da cidade de Cruzeiro do Sul. Após ela estar em solo, foi realizada a missa de fechamento do novenário com muita música e alegria, encerrando, assim, um momento de devoção, de encontros e de celebração da identidade local.
Em um mundo marcado pela incerteza e pelas crises climáticas, a fé em Nossa Senhora da Glória continua a ser, para milhares de fieis, uma fonte de consolo e esperança.
- A imagem de Nossa Senhora da Glória é levada nos ombros dos devotos até a Catedral Central de Cruzeiro do Sul – Foto: Val Martins