Procura
Fechar esta caixa de pesquisa.

Caapuã

Caapuã

Nove índios Fulni-ô dançavam o Toré, um de seus mais remotos rituais, ao redor do juazeiro . Todos da tribo conheciam as narrativas ouvidas dos antepassados: Tupã, fazendo-se humano, visitara os Fulni-ô. Nesse dia, Tupã os avisara de seu retorno na próxima lua. Para impressioná-lo e presenteá-lo, criaram essa dança sagrada, reproduzida em cerimônias.

Por Evandro Valentim de Melo

O índio mais idoso conduzia a dança agitando o maracá. Dois outros, de mãos dadas, cadenciavam passos em sincronia com o instrumento, e sopravam uma espécie de flauta. Os demais, compenetrados, acompanhavam a cantoria e o ritmo batendo o pé direito no solo. No rito, veneravam as estrelas, os rios, os animais, as plantas, enfim, a natureza.

O Toré integra outro ritual: o Ouricuri. Tudo nele se cerca de mistérios; segredo jamais revelado pelos Fulni-ô. Mesmo aqueles ausentes da tribo, residindo distante, quando se avizinha o Ouricuri, retornam para dele participar, tamanha a importância de sua tradição.

O que se escreveu sobre o Ouricuri é pura especulação. Mesmo aquilo que há em trabalhos acadêmicos, garantem os próprios Fulni-ô, “é tudo inventado pelos brancos. Não-índios jamais participaram do Ouricuri”.

Há uma certeza entre os Fulni-ô: se outros povos souberem o que acontece no Ouricuri, algo muito ruim acontecerá, e ninguém será poupado. Esse temor assombra os Fulni-ô, razão para jamais permitirem intrusos durante a cerimônia sagrada.

Essas e tantas outras informações sobre a cultura de uma das sociedades indígenas mais fascinantes do Brasil, hoje em dia, são encontradas quase exclusivamente nos repositórios de conhecimentos. Aliás, costumes ou descendentes de quaisquer indígenas, são raridades. Vários são os motivos, mas destacam- -se tanto o avanço nefasto da chamada civilização, que desrespeita os limites fronteiriços das áreas a eles destinadas, quanto a migração de vários indígenas para o modo urbano de , em tentativa desesperada de sobreviver.

A quantidade de jovens indígenas a deixar suas tribos para viver nas grandes cidades cresceu de tal forma, que o já reduzido universo dos habitantes das reservas a eles destinadas minguou ainda mais. A discrepância entre as áreas dessas reservas e a quantidade de indígenas nelas, foi o argumento preponderante de empreendedores do ramo imobiliário e do para o governo os autorizar a utilizar tais espaços em prol de “um bem maior”.

Depois de se destacar como discente na Universidade Brasil, Acir Kawamura, brasileira de descendência Fulni-ô e nipônica, emigrou para o Japão, a fim de se especializar. Não raro, chegavam ao Brasil notícias de incríveis trabalhos nos quais ela emprestava seu talento à equipe de japoneses. Um dos mais noticiados e, ao mesmo tempo, contestados, dizia do domínio, cada vez maior das técnicas permissivas ao ser humano vislumbrar, testemunhar eventos ocorridos no passado.

Os japoneses investiram maciçamente nas pesquisas, mas, a partir de determinado patamar de desenvolvimento, mantiveram-se silentes, pois, embora os humanos não pudessem interferir no passado, havia manifestações e mobilizações contrárias a esse intento em todo o mundo.

À janela de uma aeronave comercial, Acir admirava o planeta Terra, em retorno ao Brasil. Depois de anos no Japão, ela precisou retornar à cidade natal, Águas Belas, interior pernambucano. A razão de sua volta foram notícias da débil saúde de Teçá, seu avô paterno, Fulni-ô, último elo entre os tempos atuais e passados daquele povo. O ancião aguardava vê-la para se despedir e partir para o mundo espiritual.

Acir trouxera consigo medicamentos capazes de prolongar por muitos anos a vida do avô, mesmo ele já contando mais de cem anos de idade. Em respeito às tradições, Acir dirigiu-se a ele em Yathê, idioma dos Fulni-ô:

— Avô, trouxe comigo medicamentos capazes de curar o senhor…

— Acir, sei meu destino e me conformo. Chegou a minha hora.

— Não, avô Teçá, são remédios poderosos, curam e atrasam o envelhecimento…

Teçá ergueu a mão direita para Acir se calar. Ela se conteve.

— Em breve, os Funli-ô deixarão de existir. Antes, muitos dos nossos me visitavam. Há alguns anos vinham poucos. A cada ano, menos. Mês passado, um me confessou ter contado do Ouricuri a um cientista gringo. Disseque estava muito bêbado, por isso descreveu como eram nossos rituais sagrados. Depois, eu soube que ele tirou a própria vida. Agora, provável, eu e você somos os dois últimos. Daqui a pouco, restará só você, mulher sem filhos. Os segredos guardados desde muito tempo pelos nossos antigos clãs desaparecerão. Você, por ser mulher, não os conhecerá, mesmo sendo a última de nós. Mas sempre foi de conhecimento de todos, que se os segredos do Ouricuri fossem revelados a outros povos, desgraças aconteceriam. Você tem sangue Fulni-ô, mas também tem sangue de um povo de olhos rasgados, pele amarelada, de muito longe. É mestiça. Aprendeu as coisas daqui e de lá. Use essa sabedoria para ajudar. Coisas ruins estão chagando.

— Avô, Teçá, por favor, tome esse remédio. Eu fico aqui com o senhor.

— Não, minha neta. Em meus sonhos eu fui avisado: devo partir e estou pronto.

Mesmo dedicada à ciência, Acir jamais abandonou a cultura Fulni-ô. Sentia inexplicável saudade dos costumes de seus antepassados. Sonhos frequentes a lembravam disso. Contudo, tinha consciência da necessidade de dissimular, para melhor conviver com seus colegas.

Ela recebeu a notícia do falecimento de Teçá e uma na qual constava o último desejo do avô: seu corpo deveria ser cremado e as cinzas jogadas na Lagoa do Segredo, em Águas Belas. Acir chorou.

Chovia miúdo quando ela, em uma pequena e antiquada embarcação, acompanhada por um pescador local, abriu o pequeno baú, a fim de cumprir a determinação de Teçá, o último homem Fulni-ô conhecido.

— Podemos voltar, doutora? — Perguntou o barqueiro.

— Sim — respondeu Acir, enquanto entoava uma das cantigas Fulni-ô aprendida em criança.

Acir caminhou onde, antes, ficava a grande aldeia Fulni-ô. Nenhum sinal da presença de seus antepassados indígenas. Raras árvores da vistosa de tempos idos. Nada mais havia a fazer naquele lugar e naquele instante.

Os cientistas celebraram o retorno da colega brasileira. Um mais do que os outros: John Dezba. Em comum com Acir, ele carregava DNA indígena, mas dos Navajos, estadunidenses.

Dezba dividia minúsculo apartamento com Acir, em Tóquio. Grande amizade os unia. Conversavam sobre suas angústias; o vazio decorrente da dos seus antepassados. Reviviam os costumes de seus respectivos povos em animações holográficas.

A morte de Teçá reacendeu um sentimento sufocado em Acir. Dezba a ouviu e se solidarizou com a amiga.

Desde que os protestos sobre eventuais viagens no tempo ganharam proporções globais, o Japão emudecera sobre os progressos atingidos. O mundo desconhecia pretensão ainda mais ousada daquele país: não só vislumbrar, mas enviar pessoas a outras épocas.

Sobretudo, um experimento foi determinante para tal aspiração: os cientistas acoplaram minúscula câmera ao menor drone nunca antes produzido e os enviaram para captar imagens da época escolhida. Confiavam na capacidade técnica, mas acima de tudo, testariam o comportamento humano em situações de elevado estresse.

Dia 6 de agosto de 1945, espaço aéreo de Nagasaki. A grande tela, no laboratório, mostrava o B-52 a transportar a bomba atômica destinada a encerrar a Segunda Guerra Mundial. A câmera transmitiu as imagens até a fatídica explosão. As ondas dela decorrentes destruíram os equipamentos, ao mesmo tempo que as milhares de vidas de cidadãos japoneses, naquela operação militar. Êxito total no experimento, todavia, não houve comemoração.

A nova fase das pesquisas discutia a viabilidade de um ser humano viajar ao passado, pois, há muito tempo havia sido proibida a utilização de animais em experimentos.

Os testes de envio e retorno de objetos a locais variados e a épocas cada vez mais longínquas do passado aumentavam a certeza de sucesso na empreitada da viagem humana. Os objetos eram remetidos e, depois de algumas horas, ao comando dos cientistas, voltavam intactos e em pleno funcionamento. O tempo de permanência era aumentado a cada nova tentativa: um dia, dois dias, uma semana, duas semanas… Os resultados eram sempre exitosos, mantendo-se inalteradas as características dos objetos.

Diante desse contexto, Acir se ofereceu para ser a cobaia da viagem ao passado. Os debates acerca dessa pretensão consumiram muito tempo, porém, o respeito que ela conquistara junto aos pares foi fundamental na decisão: experimento autorizado. Acir protagonizaria, de forma pioneira na história da , a primeira viagem de uma pessoa ao passado.

Em reciprocidade, permitiram-lhe escolher a época e o local para a realização de tão significativo experimento. Acir elegeu Porto Seguro, Bahia, 23 de abril de 1500.

Chegada a data do experimento com um humano, Acir aparentava serenidade. As vestimentas imitavam o uniforme de paraquedistas militares, a fim de a camuflar na selva, cenário predominante no local e época escolhidos. As orientações expressas eram de, jamais, sob qualquer pretexto, interferir nos acontecimentos. Tampouco poderia se desfazer de qualquer peça ou parte do equipamento, a fim de evitar problemas de contaminação e/ou interferência na História.

Vencidos os preparativos, Acir caminhou, resoluta, para o interior da redoma, sentou-se no veículo, sua “casa” durante a permanência no passado. Deu-se a tradicional contagem regressiva e, depois de intenso brilho, Acir não mais estava naquele tempo e lugar.

Ela não conseguiria descrever os sentimentos em meio à luminosidade excessiva da viagem. Conforme orientada, acionou os dispositivos antigravitacional e de invisibilidade do veículo. Quando pôde enxergar, flutuava sobre as copas das árvores. De onde estava, conseguia avistar o belo mar da Bahia, de um azul muito mais intenso comparando-se às suas lembranças.

Planando incógnita, dirigiu-se para as coordenadas onde supunha, se encontravam as embarcações, tendo como principal líder daquela empreitada Pedro Álvares Cabral.

Lá estavam treze naus ancoradas. À praia, muitos tupinambás surpresos, temerosos e curiosos em relação aos estrangeiros ainda embarcados.

Nesse momento, eclodiu o desejo de vingança pelo sofrimento infligido a todos os povos indígenas brasileiros, desde aquele contato. A serenidade nipônica de Acir desligara-se, restando apenas sua porção guerreira Fulni-ô. Ela desconectou o dispositivo de comunicação visual e auditivo com o laboratório e desativou aquele que permitiria aos cientistas levá-la de volta ao laboratório, no Japão, em situação de emergência.

Dezba e Acir trabalharam anonimamente nos ajustes do veículo, situação que lhes propiciou a , em grande quantidade, de nanotecnologia bélica de precisão absoluta, com extremo poder destrutivo.

As caravelas e suas tripulações foram reduzidas a estilhaços. Banhou-se do sangue de centenas de pessoas aquela praia do oceano Atlântico. Os tupinambás, aterrorizados, mas poupados, partiram em disparada correria para o interior da mata.

Apenas Dezba conhecia a decisão de Acir de permanecer naquela época. Ela não intentava retornar. Portava tecnologia avançadíssima; poderia viajar a incrível velocidade, permitindo-a monitorar a costa sul-americana, de modo a destruir toda e qualquer embarcação que se aproximasse.

Do outro lado do Atlântico, a ganância por riquezas cedia lugar a dúvidas e temores, pois as muitas embarcações enviadas rumo ao que, hoje, se conhece como América do Sul jamais retornaram.

Países detentores de conhecimentos de navegação passaram a enviar cada vez menos embarcações para cruzar o oceano naquela direção. Boatos de monstros marinhos e maldições desencorajaram novas tentativas e aquela parte do mundo foi deixada em paz.

Acir, então, compreendeu: ela própria se tornara a ameaça prevista por seus ancestrais Fulni-ô, em decorrência da revelação de segredos do Ouricuri a estranhos. A extinção dos “civilizados” que viessem ao Brasil ficaria a cargo dela. Contribuiria, também, para refrear o tráfico de negros, outro crime decorrente da presença dos europeus em seu país natal.

No Japão, os cientistas discutiam sobre o que fazer. Cogitavam enviar alguém para resgatar Acir, desconhecendo o que lhe ocorrera. Kazuo Unoura, presidente da empresa, contudo, determinou a imediata suspensão de novas viagens pelo tempo, sigilo absoluto quanto ao desfecho daquela; e que apenas John Dezba ficasse encarregado de continuar as tentativas de contato; se restabelecido, deveria ele, Kazuo, ser comunicado antes de tudo.

Livrar o Brasil da colonização europeia ou de quaisquer outros povos, esse foi o juramento de Acir diante de Dezba, em honra ao avô Teçá e a seus antepassados. Ancorada nesse propósito, o País Continente se mantinha indígena. A cada nova tentativa de aproximação estrangeira, por mar ou por terra, seja ela holandesa, portuguesa ou espanhola, as embarcações ou grupos de aventureiros eram, num piscar de olhos, dizimados sem piedade.

Em certos momentos, Acir admitia: sua interferência naquela época ocasionaria perdas de pessoas muito admiradas e de suas fantásticas contribuições à humanidade. Entretanto, ao se lembrar do avô Teçá, da extinção de milhões de indígenas, Acir reafirmava seu propósito.

Duzentos e cinquenta e quatro anos se passaram e Acir envelhecera. A solidão autoimposta, adicionada ao fim da tecnologia capaz de prolongar a vida quase indefinidamente, cobraram seu preço. Ela se mantivera invisível aos indígenas, a quem vislumbrava a distância. Encantara-se com o modo simples e original de vida. A população indígena cresceu e se espalhou por todo o território.

A qualidade da tecnologia do veículo e os conhecimentos da cientista permitiram manter todo o equipamento em perfeito funcionamento. Apesar de desrespeitar o compromisso de não interferir no passado, o outro, de não deixar naquela época vestígios materiais de sua passagem motivaram a decisão de Acir em restabelecer a comunicação com o laboratório de onde partira há tanto tempo. Os dispositivos de comunicação visual e auditiva foram religados.

— Alguém na escuta? Aqui fala Acir, cientista enviada há mais de duzentos e cinquenta anos em viagem experimental.

Alguns minutos transcorreram. Ela repetiu:

— Aqui fala Acir, cientista desse laboratório, enviada há duzentos e cinquenta e quatro anos em viagem experimental. Alguém me ouve?

Longe, no que se refere à e à temporalidade, o veterano cientista John Dezba, controlando a vontade de gritar de alegria e rodeado de uma espantada equipe responde:

— Ouvimos você nitidamente. Confirme o código de segurança, por favor.

Cumpridos os protocolos, os cientistas se sentiam em êxtase. Mesmo decorrido tanto tempo, aquele experimento jamais deixou de ser comentado à boca miúda pela equipe do laboratório. Contudo, a força da autoridade do presidente prevalecia e sua determinação de ser informado foi obedecida.

Dezba tornou a falar com Acir, informando-a do desejo do presidente Kazuo Unoura em lhe falar.

— Acir, aqui fala Kazuo Unoura. Você está bem?

— Apesar de tudo estou bem, senhor presidente.

— Por que só agora você restabeleceu contato conosco?

— Problemas que só agora consegui contornar.

— Você desrespeitou o maior dos compromissos assumidos conosco.

— Senhor presidente, era questão de honra, a mesma honra defendida por diversos compatriotas japoneses, que lutaram no passado, inclusive em missões suicidas. Não me arrependo e não intento pedir desculpas.

— O que você deseja de nós?

— Encontro-me debilitada, envelhecida, doente. Aprendi com meu avô Teçá a identificar o momento de partir para o mundo espiritual e sei: minha hora chegou. Contudo, gostaria de restituir o veículo utilizado durante todo esse tempo. Ele não deve ficar aqui.

— Por que você não quer retornar? Temos condições de curá-la. Muitos progressos aconteceram em sua ausência.

— Minhas ações interferiram nos acontecimentos. Nessa época, o presente vivido por vocês, eu nem existiria. Pergunte a qualquer um dos cientistas da equipe e eles confirmarão. Vou me despir, sair do veículo e prepará-lo para que vocês o transportem de volta. Depois disso, acionarei os últimos explosivos, que guardei para este momento e me despedirei desta vida. Nada de meu corpo restará. Faço apenas um derradeiro pedido antes de tudo terminar. Gostaria de conversar a sós com o cientista John Dezba, o senhor me concederia um último desejo?

Toda a equipe, à exceção de Dezba, deixou o recinto.

— Já podemos conversar, Acir. Somos só eu e você.

— Desculpe, amigo, pela falta de notícias. Peço-lhe compreensão; foi necessário, para nossa mútua segurança.

— Não há razão para se desculpar, Acir.

— Você pode me informar quais os impactos de minhas ações para meu povo e meu país?

— O Brasil não existe, ao menos como você o conhecia.

— E o que existe, então?

— Uma grande, plural e pacífica nação indígena, respeitada e protegida por acordos internacionais, tendo em vista ser o refúgio natural capaz de manter o equilíbrio climático planetário. Essa extensa porção de terra se chama Caapuã. No idioma de seus ancestrais, significa algo como “gente que mora no mato”. Graças a seu trabalho, Acir, esse grande oásis tropical vai até a fronteira ao sul de outro país, hoje também inexistente, conhecido por você como Argentina.

Ao ouvir esse breve relato, Acir Kawamura sorriu orgulhosa e aliviada.

— Tudo valeu. Agradeço-lhe a ajuda.

— E eu também agradeço por contribuir para o grande feito. Pena você não ter subido até os Estados Unidos…

— Se eu fosse até lá e replicasse minhas ações, você desapareceria, meu querido amigo.

— Eu me sacrificaria, assim como você o fez. Imagine o mundo sem os Estados Unidos…

— Provocação interessante… Conversaríamos horas sobre isso, mas é melhor chamar nossos colegas, preciso me despedir. O veículo foi recuperado.

Em discreta homenagem, a equipe do laboratório permaneceu em silêncio por um minuto. Em seguida, reassumiram os trabalhos, havia muito a fazer.

[smartslider3 slider=25]
 

Deixe seu comentário

UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

PARCERIAS

CONTATO

logo xapuri

posts relacionados

REVISTA