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Carmen Foro: líder negra, do campo, ribeirinha, da floresta

Carmen Foro: líder negra, do campo, ribeirinha, da floresta

Carmen Helena Ferreira Foro, Secretária Nacional de Articulação Institucional, Ações Temáticas e Participação Política do Ministério das Mulheres, é mulher negra, agricultora familiar, ribeirinha, da floresta; é, em síntese, a soma de várias identidades que se mesclam, porque na , como Carmen conta, “floresta é floresta e rio é rio, mas floresta e rio sempre se juntam”.

Por Zezé Weiss

Filha de mãe e pai da agricultura familiar, o pai foi, em vida, excelente produtor de farinha. Carmen nasceu no ano da graça de 1966, em um retiro à beira do igarapé Guajaraúna, no município de Moju, nordeste do Pará, onde, desde muito jovem, militou nas Comunidades Eclesiais de Base e no Sindicato dos Trabalhadores Rurais. 

De criança, no dizer da mãe, foi bem dócil, bem mansa. Mansinha, a menina cresceu feliz, tomando banho de rio. Mas também, desde muito pequena, Carmen mostrou ser determinada, “desde miudinha, eu já dizia o que queria, e eu sempre deixei claro que queria estudar. Eu tinha uma prima mais velha que eu, ela ia pra escola e eu ficava muito zangada em casa, sem me conformar”, lembra.  

Para ir pra escola, Carmen teve que vencer o primeiro grande desafio de sua vida: aprender a nadar. Mesmo a escola ficando do mesmo lado do rio, a distância da casa era longa, “tinha que ir de canoa, não dava pra caminhar pela floresta”. Por ter perdido a em um acidente de barco no mesmo rio Moju, ela sabia que subir no “casco de madeira” sem saber nadar estava fora de questão.

Na escola da floresta, a menina teimosa estudou até a 3ª série. Depois, como costuma acontecer sempre, quando por perto não tem mais escola, Carmen teve que ir pra “casa dos outros” na cidade; no caso, foi morar com um tio, pra seguir com os estudos. Ficou por lá um tempo, depois decidiu voltar pro interior. 

Daí pra frente, para estudar, sua vida se transformou num vai e vem da roça para a capital do estado, Belém, e, nas férias, de volta pro igarapé, até que seu pai morreu.  Solteira, seis meses depois teve sua primeira filha (tem quatro, dois adotivos), “que hoje é médica, graças ao FIES” e, sendo ela a filha mais velha, se viu com a responsabilidade de prover por toda a família. 

Antes de morrer, o pai ensinou a Carmen o caminho do Sindicato. “No começo, eu pensava que sindicato só servia pra gente arrancar dente e fazer consulta pelo Funrural. Mas meu pai me levou lá e eu virei associada, com uma carteirinha amarela de dependente dele. Mas o que ele queria mesmo era que eu fosse trabalhar lá, porque eu sabia datilografia, que aprendi na cidade grande, em Belém”. 

Como o Sindicato ficava em Igarapé-Miri, para Carmen esse foi um caminho natural, porque, embora tivesse nascido em Moju e tivesse sido criada no Alto Moju, tudo o que a família fazia, de tratamento médico a vender a produção da roça, era em Igarapé-Miri, “porque tinha um canal e ir pra Igarapé-Miri era mais fácil do que ir pra Moju”.  Entretanto, isso não quer dizer que o início de sua jornada no Sindicato tenha sido fácil. 

“Alguns meses no Sindicato e eu virei dirigente. Pouco tempo depois, na campanha eleitoral de 1992, seu Manoel Luiz, o presidente, saiu candidato a prefeito pelo PT. Seu Manoel Trindade, o vice-presidente, candidatou-se a vereador, e o secretário-geral, Jair, de quem eu era suplente, também saiu candidato a vereador. Com os homens todos na campanha, abriu um espaço político e eu acabei me tornando presidenta interina do Sindicato.” 

Nesse mesmo período, Carmen assumiu a coordenação sindical da região de Tocantínia, com abrangência em sete municípios do Pará. Foi um tempo de grandes conquistas e grandes descobertas. Mas do que Carmen não se esquece é do que seus companheiros diziam: “vai ter que ser assim, mas é temporário, ela não serve, ela é muito verde.” 

Carmen ficou na presidência por oito meses e nesses oito meses viajou o município inteiro, fez intermináveis reuniões à luz de lamparinas, assumiu a defesa e associou as mulheres, “que eram muito poucas”, e ela, que não servia por ser “muito verde”, revolucionou o Sindicato. Ao emancipar a voz das mulheres do campo e da floresta, ao mesmo tempo em que firmou sua própria voz enquanto liderança, conquistou o direito à sua própria filiação sindical. 

Sobre essa etapa vencida, Carmen reflete: “Eu ocupei meu espaço, mas, mesmo assim, na cabeça de muitos dirigentes eu continuava não servindo, segundo eles por eu ser muito nova. Olhando pra trás, eu hoje às vezes fico pensando se daqui a pouco alguém vai achar que eu não sirvo, por ser muito madura. Então eu me pergunto: quando é que as mulheres vão servir por sua capacidade e competência, independentemente da idade?”

O trabalho bem sucedido com as mulheres no Sindicato de Igarapé-Miri levou Carmen a se tornar dirigente estadual como Secretária de Mulheres da Fetagri (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares) do estado do Pará. Daí a ganhar visibilidade nacional foi um caminho que Carmen nunca planejou, mas que acabou ocorrendo, especialmente a partir da ocupação da hidrelétrica de Tucuruí, na luta por energia elétrica para o baixo Tocantins, em 1996. 

“Fazia mais de 20 anos que tinha a hidrelétrica de Tucuruí e nós do baixo Tocantins, que vivíamos à jusante da barragem, não tínhamos energia. Então teve essa luta. Eu tinha brigado muito para colocar as mulheres à frente das lutas no Sindicato e na Fetagri. Agora, como ninguém queria ir pra Tucuruí, porque ninguém acreditava muito naquela vitória, acabaram me dando de castigo coordenar a ocupação da hidrelétrica. Eu não sabia o que fazer.” 

Carmen tem memória de uma luta difícil e linda: “Assumi como Secretária de Mulheres em abril e em maio lá estava eu, liderando uma greve de fome em Tucuruí. Fomos avançando e conseguindo adesões. O Dom Elias, que era um bispo de luta, desceu pra lá, e os prefeitos do baixo Tocantins também engrossaram a luta. O movimento ganhou força, e o governo recuou. Fizemos um acordo com o Ministério de Minas e Energia para ter energia e, a partir de energia, o linhão de Tucuruí. Essa foi uma grande conquista nossa”.

Depois disso, como é bem do seu feitio, Carmen se envolveu de cabeça na luta para estruturar a Secretaria de Mulheres Rurais no Pará e, no ano 2000, organizar a vinda das mulheres do Pará para a primeira Marcha das Margaridas. Daí pra frente, a Marcha tornou-se seu projeto do coração: “Em 2000, a gente do Pará veio com três ônibus, mas em 2003 nós trouxemos 45 ônibus, a maior delegação de mulheres do Pará na Marcha das Margaridas. Também isso me impulsionou e eu passei a ser o nome para, em 2005, vir pra Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), entidade que, desde 2000 e por sete edições consecutivas, coordena nacionalmente a Marcha das Margaridas. 

Na Contag, Carmen coordenou as Marchas de 2007 e 2011 onde, uma vez mais, deu um passo à frente: “Em 2011, emocionadas com a vitória da Dilma nas eleições de 2010, nós inventamos de fazer uma Marcha com 100 mil mulheres. Como pouca gente acreditava, nós decidimos ficar caladas e mobilizar por baixo. Vieram 100 mil. A grande imprensa falou que éramos 70 mil, mas nós sabemos que éramos 100 mil, como, outra vez, fomos mais de 100 mil em 2023”. 

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Foto: Fábio Pina

Carmen ficou dois mandatos na Contag e foi indicada pela Contag para ir pra CUT Nacional (Central Única dos Trabalhadores), onde assumiu a Secretaria Nacional de de 2009 a 2012 – “acompanhei a agenda das da COP de 2009 de Copenhague até o , nós brigamos muito para introduzir no meio sindical o tema das mudanças climáticas”.  

Na CUT, Carmen tornou-se vice-presidenta e depois, por um tempo, assumiu a presidência. Carmen foi a primeira mulher a presidir a CUT várias vezes, ainda que interinamente. Também foi secretária-geral da CUT Nacional. Compõe a Suplência da Secretaria de Mulheres da Contag, é vice-presidenta e diretora-executiva do Instituto Observatório Social (IOS).

Da CUT, a menina determinada do retiro do rio Moju saiu para tornar-se Secretária no Ministério das Mulheres, em 2023. “Eu estava ao lado do prefeito de minha cidade, Roberto Pina, quando chegou a mensagem. Perguntei ao meu amigo o que ele achava. Ele disse: – Carmen, isso tem a sua cara, nada veste tão bem em você como ir para o Ministério das Mulheres”.

Como é que Carmen, essa mulher de tanto sucesso, lê sua trajetória? “Não foi fácil chegar até aqui, nunca é, para uma mulher militante que não se conforma, que desobedece, que se rebela, que se recusa a sucumbir, sempre. Penso nas mulheres que, como eu fui tantas vezes, são de chamadas loucas, desajustadas, desenquadradas, e mesmo assim resistimos – por nós e pelas mulheres que sucumbem porque, embora saibam que nesse mundo as mulheres não conseguem nada comportadamente, não se sentem com coragem para enfrentar os desafios que a luta exige da gente”. 

Como é que Carmen se sente neste momento? “Me sinto muito orgulhosa da minha caminhada coletiva e me emociono com as conquistas das mulheres de luta que seguem sonhando e seguem lutando. Choro ao ver na Esplanada dos Ministérios, dando concretude aos nossos sonhos de igualdade, com menos preconceito e mais direitos, com menos e mais paz”. 

E que mensagem Carmen Foro, mulher negra, agricultora familiar, ribeirinha, da floresta; mulher de luta, feminista, ambientalista, anti-homofóbica, antirracista, dirigente sindical, militante política, servidora do governo Lula, respeitada no e no mundo inteiro tem para nós, mulheres brasileiras?

“Compreender que não existe vitória individual, que toda conquista é resultado de um processo solidário e coletivo. Ter sempre em mente a sabedoria ancestral dos povos africanos: Ubuntu – eu sou porque nós somos.” 

ZEZE WEISS

Zezé WeissJornalista Socioambiental. Matéria construída com base em depoimento de Carmen Foro, concedida à autora em julho de 2023, e nos perfis de Carmen nas páginas da Contag, da CUT e do Ministério das Mulheres. Foto: Fábio Pina.

 

 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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