“O Território” conquista o mundo

“O Território” conquista o

Depois de ganhar dois prêmios no Festival de Sundance, em janeiro, o documentário sobre as ameaças que sofrem os é premiado em festival de Haia, na Holanda. Na imagem acima, a equipe do filme no Festival CPH DOX, na Dinamarca. 
Por Jotabê Medeiros/Amazonia Real
(SP) – “Acho que eles não querem a . Querem apenas nos matar”, conclui o jovem Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau, de 21 anos, morador de Rondônia, em uma cena do festejado documentário O Território, dirigido pelo norte-americano Alex Pritz (1h25). Na quinta-feira (13), a obra levou o prêmio de Documentário Ativista da mostra Movies that Matter Festival 2022, em Haia, Holanda.
O filme já tinha levado em janeiro dois prêmios no Sundance Film Festival, nos Estados Unidos (Melhor Documentário do Mundo pelo voto da audiência e prêmio especial do júri para Obra Documental). Também já tinha ganhado, em março, o CPH: Dox de Copenhague, Dinamarca, uma menção especial do júri neste que é o maior festival de documentários do mundo, e segue concorrendo em outros quase 30 festivais de cinema do mundo. Para conseguir representar o filme em tantos festivais diferentes, tanto os protagonistas quanto a equipe tiveram de se espalhar pelo mundo.
É um raciocínio espontâneo o de Bitaté, elaborado sem base estatística, mas que parece se encaixar perfeitamente naquilo que o espectador sente quando chega à metade da exibição de O Território. Por ser um filme que se infiltra em dois fronts bem delineados, o do povo indígena e o dos grileiros (e aparentemente sem satanizar ou idealizar, a priori, nenhum dos dois lados), O Território fornece ao espectador a possibilidade de uma rara compreensão do que está em jogo nos conflitos de terras indígenas no Brasil.
Trata-se, basicamente, de exterminar – mas sem que essa palavra seja usada explicitamente, como de resto são todas as estratégias desse período histórico cínico e eufemístico, que chama negociata de “orçamento secreto”. Exterminar não só a pulsão vital, mas também a legalidade, a compreensão do outro, o diálogo, a preocupação com o bem comum, os projetos de futuro. A compreensão da vergonha universal que tem sido esse nosso tempo só será possível com trabalhos artísticos que tragam essa requintada dose de paciência, cuidado, delicadeza, firmeza.
O documentário vai primeiro até os indígenas. Os Uru-Eu-Wau-Wau não chegam hoje a 200 indivíduos, e a impressão é que são apenas meninos e meninas desarmados, fascinados com a e que brincam muito, sorriem muito. Na aldeia, parece haver um gap entre os meninos e os mais velhos, como se uma geração intermediária tivesse desaparecido. Mas nota-se um esforço cotidiano de aproximar essas pontas pela conversa.
Já os invasores brancos sugerem homens pobres de esperanças rudes, imprecisas, com suas mulheres caladas lavando panelas na pia. Foram convocados para ampliar uma fronteira que, de uma forma ou de outra, nunca será deles – a formação apressada da Associação dos Produtores Rurais de Rio Bonito impulsiona interesses de uma trincheira alheia. “Por que os índios precisam de tanta terra?”, questiona o grileiro, que acrescenta, com ironia, nunca ter visto um indígena e que eles nada produzem. Rapidamente, o espectador se questiona sobre as motivações dos dois grupos, intuindo que está diante de brasileiros que ou são manipulados ou abandonados pelo Estado.
Para que não reste dúvida sobre o período histórico, o início do filme mostra o avanço eleitoral de Jair Bolsonaro, cuja frase-chave na campanha era: “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”. Aquelas palavras, amplificadas pelo mandato e pelo crescimento global da extrema direita, parecem tornar proféticos os versos que uma banda de rock brasileira extraiu do convívio com indígenas há 30 anos: “Homem desconhecido/ Fala ao mundo/ Sugando sua crença/ Uma armadilha em cada palavra”, cantava o grupo Sepultura numa faixa chamada coincidentemente Territory.

A tragédia universal

Ao acompanhar os brancos invasores de terra e suas estratégias de avanço no território indígena, em tempo igual ao que acompanha os indígenas e suas estratégias de fiscalização e resistência, O Território acabou se convertendo em um dos documentos mais relevantes da tragédia universal do nosso tempo, o genocídio indígena e consequentemente ambiental – mostrando, de quebra, que não se pode dissociar um do outro.
Os grileiros parecem ser de dois tipos: o profissional, cuja ação parece ter uma mão invisível orientando, financiando, dando cobertura, fornecendo gado e ajuda jurídica; e o amador outsider, que se aventura à margem. A defesa do argumento do “progresso” por ambos aparece sem convicção ou lastro na realidade, moldando um desejo que não parece deles nem é verossímil, face à miséria coletiva que se vai criando conforme avança a devastação.
Entre um e outro lado da guerra humana, há um elemento mudo, agônico: o . Pausas delicadas do filme delineiam essa presença. Essas pausas vêm no movimento do rio, em uma lagarta subindo um tronco, um besouro comendo uma flor, um filhote de carregado em um sling (porta-bebê) de folhas. Há um momento em que, num terreno de recente queimada (a cena das chamas é de cortar o coração), entre árvores calcinadas e carvão, no meio do deserto provocado pelas invasões, um dos fazendeiros se detém e arranca do solo um pé de mandioca, limpa a raiz e a exibe para a câmera, dizendo, quase com orgulho, que essas plantas costumam sobreviver ao fogo.
É nesse ritmo, na captura ao vivo da imagem, da revelação da imagem viva e da emoção (e não do habitual declaratório, a chuva de sonoras e discursos), que o filme se ergue – as situações inesperadas surgidas o premiaram com uma potente característica dramática. Os áudios dos gestores da Fundação Nacional do Índio (Funai), colhidos em viagens rotineiras, vão mostrando o nonsense da nova situação brasileira, na qual a vítima é acusada de inventar a realidade que descreve e tem que fazer o papel do Estado se quiser mobilizar as autoridades em torno do seu drama.
À parte tudo isso, pode-se também compreender O Território simplesmente como a da determinação de uma mulher. Uma mulher chamada Ivaneide Bandeira Cardozo, a Neidinha,  ativista que é um desses elos entre mundos conflitantes que nos ajudam a compreender o destino da Nação. É ela a anfitriã da equipe do documentário, a entre dois universos (o cineasta e seus personagens), mas ela é ainda mais que isso. Tratada como uma segunda mãe pelos garotos Uru-Eu-Wau-Wau, é Neidinha quem dará o toque de humanidade imediatamente reconhecível a qualquer espectador de qualquer cultura.
A direção do filme ressalta, muitas vezes quase sem querer, qual é o custo de se colocar à frente de uma luta como essa, mostrando as sombras que se postam em volta da trêmula, mas determinada, heroína brasileira e o saldo das perdas violentas, como o sangue familiar de uma emboscada com o assassinato de Ari Uru-Eu-Wau-Wau, aos 33 anos. Ari Uru-Eu-Wau-Wau denunciava as invasões de suas terras e, em 17 de abril de 2020, foi encontrado morto em Jaru (RO). Até hoje, a família continua sem saber a motivação do crime.
Os meninos indígenas demonstram um notável domínio dos temas do seu tempo. Quando  jornalistas pedem autorização para ir fazer reportagens entre os Uru-Eu-Wau-Wau, eles respondem que podem também fazer esse trabalho como “frilas”, que não é necessário ter sempre a mediação branca nos assuntos que não são brancos. Outro afilhado de Neidinha, Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau compreende a Amazônia como um fator de equilíbrio para o clima em todo o planeta.
Território (Brasil/Dinamarca/Estados Unidos) teve produtores como o famoso cineasta Darren Aronofsky (de Cisne Negro) e, devido à pandemia, produziu partes de sua ação com a condução dos próprios indígenas. Em 2020, o Brasil registrou 182 casos de assassinatos de indígenas, o que representou um crescimento de 61% em relação a 2019 (quando ocorreram 113 assassinatos). Em 2021, as “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” cresceram pelo 5º ano seguido, atingindo 201 terras indígenas de 145 povos em 19 estados.
Os números da tragédia indígena apresentam um crescimento e uma continuidade tão absurdos que parecem ter levado a uma situação de quase indiferença da população. Por levantar o tema com os recursos do cinema universal, O Território desperta a indignação entorpecida e tem a capacidade de ajudar a mudar algo.

Outdoor Ari Uru Eu
Em Porto Velho, faixa e outdoor para lembrar os dois anos de assassinato de Ari
(Foto@neidinhasurui)

O Território. De Alex Pritz. Brasil-EUA-Dinamarca, 2022, 83 mins.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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