“Estamos assistindo a uma ofensiva final contra os povos indígenas”

“Estamos assistindo a uma ofensiva final contra os indígenas”

Em entrevista à Pública, antropólogo diz que madeireiros e mineradores ilegais funcionam como “carne de canhão” para privatização da

Por CIRO BARROS E THIAGO DOMENICI (AGÊNCIA PÚBLICA)

Um dos mais influentes antropólogos do planeta, Eduardo Viveiros de Castro não se dá tanta importância. “Talvez seja uma conjunção aleatória, um contingente de fatores que fez com que eu me tornasse uma pessoa em evidência dentro da academia e, depois, fora”, diz com a franqueza habitual.

Escolhido pelos leitores aliados da Agência Pública, parceiro do EL PAÍS, como entrevistado do mês, Viveiros de Castro recebeu na semana passada nossos repórteres para uma conversa de mais de duas horas, em seu apartamento, no Rio de Janeiro. A sua primeira entrevista após a eleição de Jair Bolsonaro havia sido aceita com uma dose de contragosto. “Não tenho visões especialmente inéditas e profundas sobre tudo o que está acontecendo. Estou apenas perplexo, como todo mundo”, disse, ao descrever o cenário atual como “um momento em que a palavra perdeu o fôlego, inclusive o valor. A gente não consegue mais distinguir a verdade da mentira”. Para ele, a verdade se tornou inacreditável.

Apesar das necessárias ressalvas, Viveiros de Castro conversou com a Pública sobre diferentes temas da atualidade — da resistência à destruição da Amazônia. Do Governo Lula-Dilma a Bolsonaro e os militares. Da a Belo Monte. Do terraplanismo à mamadeira de piroca. Da questão climática ao fim do mundo. No início do papo, ao tentar classificar sua perplexidade, ele afirma: “A gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia”.

(…)

Viveiros:

O Brasil, pra mim, é um grande motivo de pessimismo, desde o fato de nós jamais acertarmos as contas com a ditadura — é uma vergonha o Brasil não ter feito o que fez a Argentina, o Chile… — e o fato de que nós vivemos — e hoje está mais claro do que há dez anos — como uma democracia tutelada, consentida pelos militares até certo ponto. Desde a proclamação da República foi mais ou menos sempre isso que aconteceu. O que é mais patético ainda, porque saímos de uma monarquia estrangeira para uma República tutelada pelos militares. Então, realmente não temos muito o que comemorar.

De outro lado, esse é um país que continua marcado por uma estrutura profunda da sua natureza, a escravidão. Que continua, de certa maneira, girando em torno de um modo de ser, de pensar, de agir, que se contém à da escravidão. Não só o racismo, mas a relação do poder público do Governo com as populações negras, pobres, do Brasil, o genocídio entusiasmado praticado por governantes.

E agora a gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia para falar dos que estão no Governo. Esse governador [do Rio, Wilson Witzel] é um psicopata, esse presidente é louco, e coisa desse gênero. Cada vez mais você vê um vocabulário… “As pessoas estão loucas.” “Isso é loucura.” Então, o que que aconteceu para que de repente a política tivesse virado na psicopatologia?

(…)

Viveiros:

De fato eu não sou especialmente otimista, acho que a gente nunca esteve tão mal, do ponto de vista político, quanto agora. A situação é propriamente surreal. Eu há pouco fiz uma brincadeira nas redes sociais dizendo que o sucesso nas fake news no Brasil se deve ao fato de que a verdade se tornou inacreditável. As notícias verdadeiras são inacreditáveis, então você acredita nas falsas.

O Senado chamou o Steve Bannon pra falar no Senado. Isso é inacreditável. O Bolsonaro fala que o garimpo é fantástico e tem que acabar com os índios e não sei o quê. Isso é inacreditável. Então, você tem que acreditar em mentiras. Está mais fácil acreditar em mamadeira de piroca do que no Steve Bannon.

(…)

Viveiros:

O problema dos índios, para esse governo e para as frações da sociedade brasileira que ele representa — em particular, o grande capital, o —, é que as terras dos índios não estão no mercado fundiário. E o projeto desse governo é de privatizar 100%. Se possível, o Brasil inteiro.

Parque nacional, reserva ecológica, todas as terras que têm uso especial estão na mira desse governo. Daí a importância do Ministério do Meio Ambiente para destruir os sistemas de terras protegidas e para o ataque aos povos indígenas. Esse ataque, na verdade, exprime um desejo de transformar o Brasil inteiro em propriedade privada.

É um Estado cujo objetivo é retirar do Estado a sua soberania efetiva sobre seu território, ou melhor, transformar a soberania em apenas poder de supervisão, mas entregar as terras ao capital privado, seja nacional, seja estrangeiro.

(…)

Viveiros:

O problema dos índios é que as terras dos índios são terras da União, e o objetivo do governo é privatizar. E mais do que do governo, das classes que o governo representa, das quais ele é o jagunço, porque é isso que ele é: o jagunço da burguesia.

O segundo motivo, acho, está numa declaração absurda que o Mourão, o vice-presidente, deu há pouco tempo, louvando as capitanias hereditárias e os bandeirantes, dizendo que aquilo é o melhor da nossa , o melhor da nossa , empreendedorismo e tal.

Isso soa como uma provocação, uma provocação especificamente anti-indígena, porque ele está celebrando o genocídio ameríndio, celebrando o bandeirante, que é uma figura que foi transformada, evidentemente, a partir de , em herói da nacionalidade, quando o que ele fez, efetivamente, foi arrancar o Brasil da mão dos seus ocupantes originais. Não conseguiu arrancar todos, ainda tem 13% aí de terra [indígena].

E o objetivo, agora, é completar o processo iniciado com a invasão da América pelos portugueses. Isso é muito claro.

Os militares, agora, estão se identificando com a Europa. É muito estranho, se você for olhar a composição racial das Forças Armadas brasileiras. Não vai achar muito louro. A começar pelo Mourão, que é mestiço de índio. Mas pelo jeito não gosta.

Então, você tem uma concepção que vê o Brasil como um país essencialmente europeu, num sentido assim, do que é o melhor da nossa formação, da nossa história. Como diz o Mourão, o melhor é a Europa. É isso que ele está dizendo.

Talvez o momento culminante do filme Bacurau, que está fazendo sucesso, é o momento do diálogo em que os gringos assassinos dizem pros dois puxa-sacos brasileiros que eles não são brancos coisa nenhuma. O Mourão, na verdade, estava falando como aquele motociclista: o melhor da nossa história são as capitanias. Aí vem o gringo: “Pra começar, português nem é branco. E, segundo, você não é nem português”. Então, bum!

E as celebrações do caráter mestiço, no meu entender, são pura demonstração de hipocrisia. O que se chama de mestiçagem no Brasil, o nome certo é branqueamento.

Então, você tem um ódio do não branco no Brasil, racismo contra os negros, e um racismo dobrado, de um racismo territorial, em relação aos índios. Essas são as razões principais, eu diria.

* Um dos mais influentes antropólogos do planeta, Eduardo Viveiros de Castro não se dá tanta importância. “Talvez seja uma conjunção aleatória, um contingente de fatores que fez com que eu me tornasse uma pessoa em evidência dentro da academia e, depois, fora”, diz com a franqueza habitual.

Fonte: El País  Edição de Xapuri

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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