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Lilith: A feminista primeira…

Lilith: A feminista primeira… e o desafio histórico-cultural recorrente à figura masculina de criação e seu culto (do cristão ao pagão).

Por Iêda Vilas-Bôas – Reinaldo Filho Vilas Boas Bueno

Confusamente, o livro mais antigo do mundo coloca a primeira mulher do Paraíso em páginas arrancadas e frases inacabadas. Mas sua face é plural: em diversas culturas, foi vista como a Deusa-Mãe, como Gaia, como a primeira esposa do Deus vigente, também era vista como um demônio, no sentido anticristão. Era o polo feminino do Paraíso.

Trazia forjado, em si, um temperamento rebelde e nada submisso, que desafia, desde sua criação do barro, à figura masculina que pregava a criação pela luz. Recusou-se a se deitar com Adão de forma submissa e desafiou o próprio Criador falando em alta voz seu real nome; criando-se alada e abandonando o que seria o Paraíso – razão para Deus ter criado Eva como parte carnalmente complementar a Adão, e não igualitária, do próprio barro.

Ou, em outras histórias mais, e dizem os babilônicos que, por não aceitar a presença de Eva, ela se retirou e criou um paraíso paralelo. Um lugar cheio de vida, de seres naturais e sobrenaturais, de verde, de matas e rios, e passou a ser chamada como mãe de todos: a deusa do sagrado feminino e da fertilidade. A que se apoderou da luz divina. Mas, contos e contos depois, com o correr dos tempos se tornou tão sagrada que tomou a ressignificação e identificação com o poder e a independência feminina em vez das suas atribuições originais. Para a Deusa, a força lunar: de encher, inovar, minguar, crescer ou até escurecer.

Lilith pode ser conhecida por várias denominações: Lili, Lilu e Lilith. Sincretizada também como Ísis no Egito, Astarte em Canaã, Dianna em Roma, e por aí segue o sagrado multifacetado feminino. Seus primeiros registros vieram da Suméria e da Babilônia. Temos registro da famosa imagem de Lilith com pés de coruja e asas que vem desse período babilônico. A estátua é de 2004 a.C. até 1750 a.C e engloba o governo do famoso imperador Hamurabi, criador do primeiro código de leis de que temos notícia. A figura foi identificada com Lilith com base em textos e outras obras do período.

A deusa Lilith foi simbolizada com elementos como a coruja e com uma coroa, símbolo visível de seres divinos ou demoníacos. Ainda não havia essa classificação do bem e do mal que nos legou o Cristianismo. Naquele tempo, alguns ainda tinham a crença de que seria divino por então existir uma relação de equilíbrio entre as ações desses seres, e que um não vigora sem o outro. De forma que acabaram, por estarem numa região desértica, colocando Lilith como uma das representações demoníacas do deserto, relacionada à morte.

A fama de Lilith permanecia. Para uns, a mãe, a sementeira, a dona da vida; para outros, demoníaca e perigosa, a devoradora de vidas. Sua fama correu longe, pois entre 400 d.C e 800 d.C., coincidindo com o período de islamização da região, o que mostra que mesmo mil anos depois, a crença nesses seres ainda era corrente, foi encontrada uma série de tigelas, provavelmente de uso mágico, com desenhos e orações inscritos, com representações de Lilith e que, certamente, eram usadas para afastá-la.

Essas ideias do mal que habitam o deserto influenciaram a visão judaica de Lilith, que depois povoou a mente dos cristãos na Idade Média. Não existem referências claras a Lilith nem na Bíblia nem no Torah, mas ela é citada em alguns trechos do Talmud, que reunia o conjunto das Leis Judaicas sob o aspecto da ética e teologia e influenciaram o judaísmo rabínico na Europa.

No Talmud, segundo consta em pesquisas, é onde aparecem as citações da primeira mulher como uma criação direta de Deus, assim como Adão, que depois seria expulsa do Jardim do Éden (seria a própria serpente, alada, depois de corromper o casal criado de barro e costela, tomando suas asas para voar até o Mar Vermelho) e se tornaria uma pária.

No Zohar, um importante texto cabalístico hebreu apoia essa ideia e cita Lilith como a criação humana, juntamente de Adão, com o mesmo valor e importância. O livro chamado O Alfabeto de Ben-Sirá, de tom satírico, produzido por rabinos e intelectuais judeus, cita Lilith oficialmente por não querer ser submissa a Adão, inclusive ao ficar por baixo na posição sexual.

É claro que os machistas veteranos e aspirantes dão à fuga de Lilith do Paraíso como uma piada e advertência: ao se recusar a cumprir ordens masculinas, a mulher deveria sofrer o exílio e a humilhação. Infelizmente, ainda há uma réstia desse pensamento enraizado na cabeça de muita gente por aqui e aí; Entretanto, a cultura letrada da Idade Média e dos séculos seguintes, cultuaram a ideia da Lilith como a primeira mulher, uma mulher decidida, forte e corajosa, nossa primeira feminista.

São muitas histórias a respeito da luta de Lilith contra o patriarcado e machismo imposto por Deus, Adão, Abrahão e muito também foi poetizado e romantizado a respeito da deusa Lilith como forma do empoderamento feminino nos antros sagrados. Lilith é a metáfora mais antiga e ainda assim mais clara do poder, e poder se empoderar do feminino, e representa o fortalecimento dos direitos das mulheres de desenvolver a equidade de gênero, pensando no equilíbrio cósmico que necessita do polo passivo e do polo ativo.

Nos anos 1960, com a influência dos movimentos feministas, a figura de Lilith e seu papel foram revistos por parte das mulheres da comunidade judaica. Finalmente a deusa Lilith começa a ser entendida e respeitada como um símbolo de luta contra o patriarcado e sua imagem de subversão feminina passa a ter muita influência no universo feminino. Também se apropriam do mito os movimentos neopagãos em oposição aos dogmas do cristianismo.

Para estudiosos e teólogos, a mulher era vista como o homem incompleto, por ter órgãos genitais internos, pela gravidez, pela amamentação, pela menstruação. Enfim, a mulher era e ainda é um mistério, para alguns essa incompletude da mulher a colocava na condição de ser um homem defeituoso. Muitos não consideram e talvez nunca considerem que a mulher é plena em si mesma, perfeita enquanto ser. Essa é a maior virtude de Lilith: ressaltar a plenitude feminina, mostrar que o sagrado feminino é indivisível, é uno e completo em suas diferenças. Independente.

Entendemos e apoiamos que, a despeito do que religiões judaico-cristãs dizem, Lilith é uma deusa que representa a força feminina e tem poder sobre os ventos, as tempestades, a escuridão, a sedução, a vida. Ela representa a mulher livre, de opinião formada em suas experiências e raízes, que não se limita a hábitos e atitudes convencionais.

Lilith não se sujeita às expectativas sociais. Dona de si, liberta como libélula voando depois de breve chuva, vive de acordo com os seus desejos mais exóticos e exuberantes. Lilith até mesmo no escuro, por ser coruja, traz consigo a inteligência da raposa e a tenacidade e poder de adaptação da serpente. É coração: sentimento que se opõe à força, que também machista, é devida e dada ao homem.

Lilith não é feroz feminista, ela não faz exclusão do masculino. Sem preconceitos, cuida de despertar na consciência humana a importância do amor, em suas mais variadas formas. Para a deusa toda forma de vida faz parte de um todo, inclusive o ser humano, homem e mulher, que transmutam energias. Todas as mulheres podem ter a proteção dessa deusa e também os homens, pois a feminilidade está na alma – é natural.

Normalmente, dizem que todos os protegidos por Lilith são pessoas bonitas e atraentes, porém, estamos tratando de um terreno fluídico, onde a beleza física é um atributo carnal e não espiritual. A verdadeira essência de Lilith nos traz o resgate da consciência espiritual que nos reconecta com o sagrado feminino (um ser completo e único), envolvendo-nos numa atmosfera de amor, equilíbrio, independência e transcendência!

Salve, Deusa Lilith!

Iêda Vilas-Bôas – Escritora. Reinaldo Filho Vilas Boas Bueno – Escritor.

Publicado originalmente em 1 de dezembro de 2021


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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