Marcha e contramarcha para o oeste pelo capital

“Assim como noutros , resistência houve e há.” Fernando Antônio Gelfuso

A compreensão dos grandes problemas que assolam as comunidades que vivem no outrora denominado “Sertão” do Brasil passa, em grande medida, pela historicização de todo o processo de inserção das regiões que o integram na órbita de influências dos chamados “Impérios Mercantis Salvacionistas” ibéricos – conceito criado por Darcy Ribeiro – e dos imperialismos que se sucederam no processo de expansão do capitalismo internacional.

De início, por falta de atrativos que atendessem aos anseios mercantis das burguesias e dos Estados europeus, as terras situadas a oeste dos limites definidos pelo Tratado de Tordesilhas (1494) foram desprezadas.

Entretanto, findos os primeiros cem anos da Idade Moderna, convictos de que era preciso salvar as almas de indígenas “infiéis”, fujões e “despudorados”, para o oeste marcharam padres de diferentes Ordens Religiosas que, enquanto “protegiam”, desenraizavam os povos ameríndios.

De outro lado, criadores de gado, expulsos pelos canaviais e pelas guerras contra os holandeses travadas no litoral nordestino, tomavam os mesmos rumos, seguindo os rios; catadores de , frutos, cascas e plantas se embrenhavam na seguindo o caminho do gigante Amazonas; militares e aventureiros portugueses, espanhóis, franceses, ingleses e até irlandeses engrossavam fileiras para o oeste brasileiro em busca de uma lasca de que pudesse trazer-lhes prestígio, prosperidade, poder político ou a glória de Deus.

Os bandeirantes, colonos de São Paulo e São Vicente, algozes de índios e negros, constituíram-se, naquele contexto, em meros instrumentos da opressão colonial, já que eram eles também vítimas do modelo de colonização exclusivista e excludente. Desde fins dos anos 1600, os expedicionários do Planalto de Piratininga marcharam a serviço do Estado português em busca de riquezas minerais e de seres humanos negros que ousaram buscar a nos Quilombos que se multiplicavam.

Nas andanças daquela multiplicidade de gentes que seguiam Brasil adentro em busca de liberdade, paz, fé, sonhos, riquezas ou homens para serem escravizados, é que se deu a descoberta do ouro. Assim, nos anos 1700, a exploração intensiva do precioso metal e, posteriormente, do diamante, consolidariam a ocupação de terras que acabaram urbanizadas, mercantilizadas e habitadas por novos segmentos sociais.

A despeito da espoliação – de terras e gentes – pelo colonialismo português e pelo imperialismo britânico, foi na sociedade moldada pela atividade extrativista mineral que se deu o primeiro grande processo de integração cultural formador da nossa brasilidade. Foi na imensidão dos “Sertões” que se encontraram mercadores das mais diferentes regiões, com suas bagagens de artigos produzidos nas mais longínquas sesmarias, línguas, hábitos e costumes trazidos das mais diferentes conformações socioculturais, sujeitos elementares no “fazimento” do Brasil e da brasilidade.

E foram os segmentos médios formados naquela nova ordem social mais urbana e, portanto, mais contraditória nas suas posturas e interesses, que acabaram por levar adiante o emancipacionista – embora excludente – que conduziu à Independência, em 1822. A libertação, como se sabe, em algumas regiões tardou um pouco mais, e foram poucas as ações oficiais voltadas para a integração dos povos que pouco a pouco construíam a ideia de nação. José Bonifácio lançou a ideia da interiorização da capital, só muito mais tarde levada a cabo.

Na primeira metade do século XX, o centro nervoso da brasileira fora deslocado definitivamente para o Sudeste, onde o café reinaria quase tão soberano quanto os dois imperadores que chefiaram o jovem Estado nos anos 1800.

No Norte, a borracha produziu coronéis de novo tipo e mais trabalhadores espoliados que emigravam do Nordeste em crise. Os grupos nativos reagiram à violação de seus territórios por meio de guerras cruentas. Há casos de subserviência calculada e mesmo de suicídios coletivos como forma de resistência.

A República, jovem e excludente, nascida sob o signo e os desígnios do café e da elite que detinha o controle de sua produção, negava-se a si mesma: aos indígenas, negava a cidadania e a própria existência; aos camponeses que no “Sertão” buscavam alternativas de vida, ela respondia com os militares e os canhões, seus porta-vozes. A empreendedores estrangeiros e nacionais permitia a multiplicação dos capitais, via de regra em ritmo proporcional à subtração de vidas nativas. Verdadeiros extermínios foram perpetrados.

Fato é que a marcha para o oeste visava a contramarcha da riqueza, quase nunca para dentro, quase sempre para fora. Mesmo a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1910, estava inserida no contexto das políticas de expansão do capital e, portanto, da inserção daquelas áreas e daquelas gentes no âmbito dos sistemas nacional e mundial de produção.

Getúlio Vargas, na sua fase mais autoritária, empreendeu ações efetivas do Estado brasileiro por meio da campanha de integração nacional: a Marcha para o Oeste de 1937-1938. Foi no ambiente criado pela política integracionista de Vargas que despontaram as figuras dos irmãos Orlando (1914-2002), Cláudio (1916-1998) e Leonardo Villas-Bôas (1918-1961), indigenistas que se integraram desde logo aos projetos lançados pelo programa. Acompanhados por brasileiros como o Marechal Cândido Mariano da Rondon, Heloísa Alberto Torres, brigadeiro Raimundo Vasconcelos de Aboim, Darcy Ribeiro e José da Gama Malcher, idealizaram, entre outros projetos, a criação, em 1961, do Parque Nacional do Xingu, uma das mais importantes reservas indígenas da América, com o intuito de proteger as culturas indígenas da região, bem como proteger suas reservas naturais. Ali também se lançaram as bases para os 50 anos em 5 da Era JK.

No ambiente marcado pelos conflitos ideológicos da chamada Guerra Fria, a questão geopolítica foi adicionada como um dos ingredientes mais importantes no bolo da nossa marcha. A política desenvolvimentista iniciada por Juscelino, o dispendioso projeto de integração nacional e as ações integracionistas dos tempos militares aí se inserem e como tal devem ser entendidas.

Pelos rios da Amazônia, passaram e passam agentes do capitalismo internacional ligados ao setor farmacêutico e também aos de cosméticos, higiene e perfumarias. Grileiros, latifundiários e madeireiros representam a ganância do capital nacional. Mas, assim como noutros tempos, resistência houve e há. Guerrilheiros sonhadores, trabalhadores das reservas auríferas, camponeses sem terras e indígenas desterrados lutaram e lutam pelo direito à vida.

Nas terras militarizadas e, mais uma vez, postas à mercê do grande capital, segue sendo escrita a História do oeste brasileiro… o agronegócio, à frente, carrega a bandeira.

fernando-antonio-gelfusoFernando Antônio Gelfuso
Cientista Social, Historiador, .

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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