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Não, Identidade Indígena não é fantasia!

Não, Identidade Indígena não é fantasia!

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Este mês começou para mim com uma cena um tanto quanto pitoresca, que gostaria de utilizar de base reflexiva para este texto. Bem, outro dia, uma conhecida me interpelou para perguntar se eu tinha alguma roupa, enfeite de cabeça para emprestar ao filho dela, que iria realizar uma apresentação na escola. Perguntou-me em especial se eu não teria um cocar tipo o que ela vira na cabeça de um dos txai Huni Kuin que ela vira em minha companhia no dia anterior. Ela explicou-me que havia procurado em lojas de fantasia, mas lá só tinha para crianças pequenas, e, portanto, não caberiam no filho, já que é um adolescente.

A pergunta provocou em mim a ‘Chloe face’, que deve ter antecipado à minha interlocutora a certeza de que minha resposta seria negativa, como de fato foi. Penso agora que talvez devesse ter travado uma conversa mais demorada com ela, explicitando algumas razões pelas quais um empréstimo dessa natureza seria para mim impossível, e, quem sabe, fornecendo a ela algumas alternativas talvez mais apropriadas para auxiliar o filho dela em sua apresentação escolar.

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Aconteceu que, tão logo eu disse o ‘não’, ela virou as coisas e foi tratar da sua vida, provavelmente frustrada com a minha falta de simpatia para aquela demanda que, aos olhos dela, deveria ser algo muito pertinente e simples. Pois bem, este texto é uma resposta mais detalhada e longa para a minha impossibilidade de fazer o referido empréstimo.

Não é a primeira vez que alguém me pergunta isso, e, mesmo assim, eu confesso que nunca deixo de observar esse tipo de questão com um misto de espanto e dúvida.

Fico surpresa sim, não consigo deixar de ficar! Me parece extremamente curioso como os raion (não-índio) não conseguem entender como certas solicitações que eles nos fazem podem ser problemáticos, do mesmo modo que nunca deixo de duvidar de que pedidos dessa natureza possam ser formulados a sério.

Por outro lado, eu entendo a motivação das pessoas que me perguntam tais coisas, dentro da lógica de que, sendo eu indígena, trabalhando em uma organização indígena, e tendo tantos amigos indígenas, é muito natural que eu tenha roupas e adereços indígenas.

Pois é, pensando por aí faz sentido. E sim. A verdade é que positivamente possuo peças indígenas, algumas do meu povo, outras tantas de outros povos. E algumas dessas peças não poderiam ser utilizadas por um garoto? Talvez. Mas acho que a pergunta correta não é se elas poderiam ser usadas, mas se elas DEVERIAM ser usadas.

Ah, sim, acho que já deixei implícito, mas vamos ressaltar: a mulher que me interpelou com o pedido é branca (não-indígena) assim como também o é o filho em questão. O que tem isso de errado? Bom, nada. A princípio, nada. “Não tenho nada contra brancos, até tenho amigos que são…” (Sim, eu estou sendo sarcástica, e isso é óbvio, mas por via das dúvidas é sempre bom enfatizar, né?)

Ok, voltado a falar sério, porque aqui o assunto é um “papo reto”, como costuma dizer o Karo Munduruku, o que eu gostaria de assinalar nesse texto é que este diálogo ocorrido entre esta minha conhecida não indígena e eu poderia ser apenas uma conversa simples entre duas pessoas, uma delas interessada em prover uma necessidade imediata de um filho, com outra pessoa que, sendo quem é, poderia ter as condições de provê-la. Só que quando uma dessas partes em diálogo é indígena, as coisas podem não ser assim tão simples por um motivo bem
simples: eu não tenho ‘fantasia de índio’.

Para ser mais precisa, eu devo dizer que fantasia de índio não existe. Aliás, e antes de qualquer coisa, índio, a menos que você esteja falando daquele metal representativo localizado no 5º período e 13º grupo da tabela periódica, também não existe! Tá bom? Então tá bom.

Roupas e adornos indígenas são roupas e adornos indígenas. As que eu tenho, ou são peças ligadas à tradição ancestral do meu povo, ou são de outros povos, adquiridas ou presenteadas a mim. Todas elas falam de identidade, de pertença, de cultura e de tradição. Isso porque as peças indígenas são feitas assim. Para além das matérias primas com as quais são compostas, elas são feitas também de , cosmologia, ancestralidade, e conhecimentos ancestrais.

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Por outro lado, aquilo que a minha conhecida encontrou na loja, e que não servia no tamanho do filho dela são um engodo, uma distorção, e considero bastante ofensiva a sua existência e sua associação com a riqueza cultural de povos inteiros. Além de serem feias em si mesmo, elas colocam a no mesmo patamar das perucas prateadas e dos óculos engraçadinhos que se usa nas festas de .

Ah, sim… o Carnaval. Aquela época do ano em que indígenas, negros, trans são obrigados ao dissabor de ver suas identidades transformadas em alegorias constrangedoras! Aquela ditosa época do ano em que quando alguém aponta o quão errado é a alegorização da identidade alheia, se é taxado de reclamão-mimizento-que-vê-racismo-em-tudo. Aquela ímpar data festiva em que os raion que se acham donos de tudo exercem esse pretenso direito troçando daquilo que eles mesmos tão diligentemente têm se esmerado em destruir em cinco séculos de genocídio.

E aí, já não bastasse o Carnaval, ainda rola o ‘me empresta uma fantasia sua para a apresentação na escola’? Puxa vida!

Não quero dizer com isso que eu não poderia emprestar minhas roupas a alguém que as pedisse, dependendo da circunstância e da pessoa. No entanto, a circunstância em questão, ligado ao pedido que me foi feito, não é um exemplo em que o empréstimo se faria possível.

Acontece que cada uma das peças Puri que eu possuo foram feitas por mim ou por parentas minhas com um propósito e um uso específico, e por isso elas estão carregadas de mehtl’on (força) e tutak (espírito) Puri.

É possível sentir essas potências quando se as toca, mas, não tenho dúvidas de que para senti-las, se faz necessário ser também portador desse dessa mesma conexão que faz dessas coisas bem mais do que enfeites e penduricalhos estilosos.

É o mesmo com se visitar um dos lugares sagrados para o meu povo: a pedra sonora de Rezende, por exemplo, pode ser apenas uma pedra maneira para tirar uma foto, ou pode o local aonde ainda reverbera o grito de um povo massacrado. Para mim sempre será a segunda alternativa.

Do mesmo modo, eu reconheço o tutak nas peças de outros povos que adquiri, e nas que me foram presenteadas. São peças que me permito usar, e nas quais também reconheço os signos de identidade e pertença dos povos dos quais provém.

Uso-os com a consciência do seu significado, daquilo que representam para aquelas que as fizeram. Tenho orgulho dessas peças, e dos motivos pelas quais me foram dadas. Sei, no entanto, que elas não me transformam em outra coisa que eu não sou, e não pretendo parecer ser.

Vai daí também o motivo pelo qual eu nunca compraria um cocar de outro povo e, se o recebesse de presente, eu não creio que seja capaz de vê-lo como um adereço que eu pudesse usar, menos ainda, fazer um empréstimo a um raion.

Cocar, minha gente, é uma coisa muito séria! Séria demais para ser alegórico ou fantasioso, e, no meu entender, absolutamente vetado para ser usado por um não-indígena. Cocar tem peso. E esse não é um peso que possa ser suportado por uma cabeça de branco.

(Eu quero aqui abrir um parêntesis explicativo: sempre que eu faço comentários desse tipo, costumo receber críticas advindas de alguns raion que acham que eu sou radical demais em vetar o acesso de certas coisas aos não-indígenas. E sim. É radical mesmo. E tem de ser. Desculpem se isso fere vossas suscetibilidades, acostumadas que são a acharem que podem tudo. Não, não podem. Por favor, não insistam. A direção agradece!)
Ademais, eu creio que preciso problematizar o empréstimo que me foi solicitado ainda no âmbito do detalhe geográfico e contextual dele ter sido feito neste em que atualmente vivo, o Acre.

Como não escapa a ninguém, aqui existe uma população indígena considerável, e basta dar uma volta pelo centro da cidade de para topar com um parente circulando por aqui, seja pertencente a um dos 15 povos que aqui habitam, sejam os ‘estrangeiros’ como eu. Estamos por aqui, vivendo, trabalhando, consumindo, comprando, vendendo, exercendo o direito de ir e vir.

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Alguns desses parentes, aliás, amealham sua renda a partir da comercialização de e artesanato, que poderia muito bem prover a tal necessidade da minha conhecida, caso ela quisesse adquirir para si ou para o filho uma dessas peças.

Acontece, no entanto, que a peça comprada também não seria capaz de sanar um outro âmbito que considero problemático no pedido em questão: não posso deixar de me perguntar qual seria a dificuldade de me solicitar o contato (e eu tenho tantos que, conforme já brincou a minha irmã, meu Facebook  deveria ser chamado de Funaibook ) de algum dos cerca de 20 mil indígenas nesse estado para que ele fosse à escola fazer a referida apresentação? Sim, eu sei que isso pode parecer preciosismo, exagero, chatice, implicância minha…

Parece, e talvez seja, porque se tem uma coisa na qual eu sou implicante é com lugar de fala.

Lugar de fala é uma coisa muito séria para mim. E é por isso também que não dou conta de encarar com tranquilidade a impressionante falta de compreensão de professores, escolas, escolares e pais de aluno que acham que está tudo bem ignorá-lo.

Não, não está tudo bem, e não tem como estar tudo bem, e não vai ficar tudo bem até que coisas desse tipo passem a figurar em um passado distante do qual as pessoas sintam certa vergonha.

Como já apontei em uma conversa passada, e a despeito de todos os malabarismos que se tem feito para suprimir a legislação vigente, ainda estamos vivendo sob a égide da lei que tornou obrigatório o ensino da cultura indígena e afro-brasileira nas escolas.

Esta obrigação legal impôs às instituições de ensino algo que era óbvio: o reconhecimento de que o Brasil é um país multiétnico e plural, e toda essa deve ser tratada de forma respeitosa e inclusiva.

E sim, eu acredito piamente que o respeito nasce do conhecimento, razão pela qual não tenho dúvidas do quão importante é que as escolas se preocupem em introduzir tais conteúdos em sala de aula.

Mas como ensinar respeito com fantasias? Não dá! Não tem como. Não cola. Fica feio.

Rail foto Rio Branco

Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e  doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC)

As  imagens utilizadas nest post foram selecionadas por nosso parceiro  Jairo LimaCrônicas Indigenistas e são da autoria da pintora paranaense Cristiane Campos.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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