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Que será dos Yanomami?

Que será dos Yanomami?

A grande dor, o desconsolo sem remédio, a tragédia atroz e quanta expressão verbal exista mais do sofrimento mais sofrido empalidecem frente a este feixe de fotografias. Claudia Andujar captou e nos dá aqui na límpida simplicidade desse espelho da dor, que é a cara humana, o retrato inteiro do drama Yanomami.

Por Darcy Ribeiro

Crianças que esperam a morte mamam, tateiam, tocam mães amáveis que olham desenganadas o fluir do tempo derradeiro. Meninos arqueiam, preguiçosos, gozosos, seus corpos flexíveis. Verdes corpos já marcados de cicatrizes. Homens perplexos, que viram morrer quase todos os seres que amavam, parecem perguntar por que ainda vivem.

Por quê? Que desgraça caiu sobre esse povo indígena da floresta virgem que assim os dilacera e dizima? Essa desgraça tem um nome conhecido, um nome de enfermidade contagiosa, mortal: é civilização! Claudia nos põe diante de mais um testemunho objetivo, inobjetável, de como a civilização se expande virulenta. Os Yanomami vivem – e disto morrem– uma instância mais desse processo feroz de desfazimento e refazimento do humano.

Em sua expressão inexorável, os homens perdem a inocência, a alegria e singularidade que guardaram ao longo de milênios de existência igualitária para, desfeitos, transitar da tribalidade para a civilização. Para quê? Para nada! Sim, isso sucedeu a nós, humanos.

Desde alguns milhares de anos, em muitos lugares da Terra, alguns povos começaram a edificar cidades. Com elas, e por elas, bipartiram a condição humana, desde sempre unitária, em dois gêneros irredutíveis de existência: o citadino e o camponês. Simultaneamente segmentaram a sociedade, até então solidária, em classes sociais antagônicas e diferenciaram seu patrimônio cultural comum e coparticipado, em um componente erudito, dominado por muito poucos, e em outro vulgar, das multidões.

Nesse novo caminho, o humano desabrochou realizando muitas de suas peculiaridades. Mas perdeu atributos e qualidades preciosas, que desde então sonha recuperar nas utopias mais generosas. A busca da beleza, por exemplo– que antes comovia a todos os homens e a todos dava satisfação no esforço, acessível a qualquer um, de expressar-se belamente em tudo que fazia –, se transcendeu.

Passou, pouco a pouco, a ser uma atividade especializada de artistas profissionais, cujas criações singelas de peregrina beleza muitos poucos têm capacidade de apreciar e muito menos de adquirir. A fartura da vida em comunidades voltadas para o esforço de reproduzir coletivamente suas frugais condições de existência deu lugar a formas requintadíssimas de vida faustosa para uns poucos, no meio da penúria generalizada.

A condição singular de cada homem, como ser individual e inconfundível, deu lugar a multidões incontáveis de homens sem cara que se veem e se ignoram, ou se tratam uns aos outros como categorias ou como componentes de distintos rebanhos. O mais espantoso, porém, é que tudo isso se fez tão sofridamente para depois se desfazer, segundo tudo indica, numa sociedade não terminal, mas futura, que, voltando à condição primitiva das comunidades sem classes, devolveria aos netos dos nossos netos um pouco do que tiveram seus antepassados mais remotos. Para quê? Para nada!

Os Yanomami vivem uma das derradeiras instâncias desse processo. Tamanho foi o êxito de seu último ciclo – protagonizado pela civilização europeia-ocidental-cristã – que no seu curso se desfizeram as milhares de caras em que se encarnava a humanidade prístina. Resta delas o que resta dos Yanomami e de uma dezena mais de povos arredios, escondidos nos ermos das matas mais recônditas do planeta. Do fundo de seus refúgios, esses povos inviáveis olharam para cima da fronte das árvores e viram, para além do andar mais alto dos pássaros que voam, as espantosas aves de asas rígidas que sobrevoam, perquiridoras, as suas aldeias.

Também viram chegar por terra, afanosamente, subindo dos grandes rios que eles evitam como rotas muito frequentadas por tribos inimigas, uma raça de homens novos. Perceberam logo que eram gentes ferozes e diferentes. Uns brancos demais, outros pretos demais, todos envoltos em panos e muitos armados de mortíferos paus tonitruantes. Atrás deles chegaram homens mansos de gestos, mas com a boca cheia de verdades veementes. Para civilizá-los! Para salvá-los!

Coincidindo com a chegada de uns e outros, caiu sobre os Yanomami a hecatombe das dores invisíveis, das mortes inenarráveis. Eram agentes da civilização que se antecipavam a ela, representadas pelas pestes brancas, desconhecidas até então. Umas arrombam os peitos de tosse e catarro.

Outras cegam os olhos de dodói e gonorreia. Ainda outras apostemam a pele de sarampo e varíola. Outras, ainda, apodrecem e caruncham os dentes de cáries. Com elas vieram, também, as que estiolam e esterilizam e fenecem os sexos dos homens e das mulheres. Para onde foi – eles se perguntam apavorados – o poder da floresta virgem que por todos os tempos protegeram o seu povo preferido, os Yanomami?

Que sucedeu com a potência incontestável dos antigos pajés, capazes desde sempre de prever e evitar desgraças e de curar todas as doenças? Nada podem já os espíritos, desmoralizados, talvez até mortos, como os homens. Nada podem também os pajés. Nem os novos homens oferecem nenhum remédio eficaz contra a dor e a morte que chegaram com eles. E tudo isso é só o começo.

Piores são as coisas que já sucederam e de que os Yanomami nada sabem. Um longínquo senhor, todo poderoso, decidiu já que eles não necessitam nem merecem um território contínuo para continuarem vivendo como sabem viver, os que sobreviverem, na mata em que sempre viveram.

Ele determinou que aos índios Yanomami fossem dados dezesseis lotes de floresta virgem, separados uns dos outros não no mundo das coisas, mas no mundo das leis. Graças a essa providência previdente, agentes da nova gente entrarão como donos pelas terras que ficarem entres os lotes, a fim de abater as matas, queimá-las, convertê-las em pastagens e chamar para elas novos habitantes bovinos. [Felizmente essa profecia não se concretizou, mas, por outro lado, as  aldeias foram invadidas pelo garimpo, trazendo miséria e morte para os Yanomami].

Assim será, até que se convertam os lotes Yanomami em minúsculas ilhas no meio da branquitude civilizatória. Para quê? Por quê? Ignoro. Só sei que no Brasil de hoje, por algum critério misterioso, o fato de os Yanomami viverem há milhares de anos naquelas matas não lhes gera direito algum de nelas permanecerem.

Sei também que a sociedade nacional que se expande sobre os Yanomami, sendo regida pela lei da pecúnia, aprecia mais o gado bovino doque a gente humana. Tanto que, entre criar mais algumas fazendas latifundiárias na floresta abatida ou reservar para os brasileiros do próximo milênio uma mostra intocada da natureza amazônica – dando ao mesmo tempo o espaço e o tempo de que necessitam para se adaptar às condições de vida que lhe são impostas preferiram a expansão latifundiária.

Estou seguro de que amanhã muitos brasileiros vão corar de vergonha por terem tido ontem – hoje, quero dizer – antepassados tão brutos como nós. Temo também que muitos homens humanos no mundo inteiro já estejam nos olhando assustados. Por que tanta violência contra índios indefesos? Qual é a fonte de tanto desamor aos homens? Que será dos Yanomami?

Darcy Ribeiro – Antropólogo, escritor, historiador, sociólogo (1922–1997). Texto encontrado em Claudia Andujar: a vulnerabilidade do ser, 2005. Título original: “Um depoimento sobre os índios Yanomami”. Publicado pela primeira vez em “Frente ao eterno: uma vivência entre os índios Yanomami”, 1978, segundo o livro de Claudia. Foto de Capa: Alex Azevedo/Instituto Socioambiental. 


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revista 115

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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