Carta ao Noel Brasilis

Carta ao Noel Brasilis

Natal é um desfiar de saudades, de nosso filho que já está mais nessa dimensão, de todos os que amávamos e se foram… e até pelos que, malgrado a idade e o difícil tempo nessa terra, felizmente ainda compartilham a conosco.  Nesse natal não quero escrever sobre dores nem amores, mas sim sobre renascer.

Na , a gente renasce todo dia, com afetos, desafetos, dores e alegrias, sempre aprendendo algo, sempre, sempre! Isso é uma obrigação do ser vivente, fazer jus por estarmos vivos, aprender sempre! Hoje quero falar com o meu Brasil!

Duas belezas me marcaram nesse natal e me fizeram escrever esse texto: o show de Caetano, onde ele relembrou, com muita ternura, dos natais bregas e lindos dos presépios das humildes festas do interior e o filme Lisbela e o Prisioneiro, que sempre assisto para que o amor e a beleza não se percam de mim. O filme mostra a breguice do verdadeiro Brasil, com suas cores vibrantes, seus sotaques marcantes, seu esmero na composição dos personagens caricatos e suas músicas apaixonadas. A essa altura do texto, já dá pra desconfiar que estou fazendo uma exaltação do brega como marca inconfundível da nossa .

Desde a semana de moderna, em 22, que nossos poetas repudiavam a europeização do Brasil e insistiam na deglutição antropofágica e ‘macunaímica’ de nossa cultura nacional, como fala Oswald de Andrade no seu poema ‘Digestão’


A couve mineira tem gosto de bife inglês
Depois do café e da pinga
O gozo de acender a palha
Enrolando o fumo
De Barbacena ou de Goiás
Cigarro cavado
Conversa sentada

E eu, que um dia, não queria ser brega! Que ingenuidade a minha, pois não ser brega no Brasil é quase como se perdêssemos nossa essência mais íntima, mais verdadeira.  O brega é lindo, seja nos tachos de cobre onde Cora Coralina, fazia seus doces nos intervalos de sua poesia memorável, seja no colorido de nossa gente, como bem pontua Darcy Ribeiro:

“Ao longo dos séculos, viemos atribuindo o atraso do Brasil e a penúria dos brasileiros a falsas causas naturais e históricas, umas e outras imutáveis. Entre elas, fala-se dos inconvenientes do tropical, ignorando-se suas evidentes vantagens. Acusa-se, também, a mestiçagem, desconhecendo que somos um povo feito do caldeamento de índios com negros e brancos, e que nos mestiços constituímos o cerne melhor de nosso povo.”

Seja nos namoros escondidos no portão, ao som de Roberto Carlos ou nos dias de domingo de Tim Maia, com camisas do Flamengo e bandeira na mão ou até na valsinha de Chico Buarque, quando o casal se redescobre e vai para a praça começar a se abraçar ou, ainda, nas quadrilhas de nossas (e)ternas festas juninas, sob as noites do Luar do de Catulo da Paixão Cearense.  Tudo isso nos remete ao que há de mais lindo em nossa alma, a alma brasileira! Tão esquecida nos dias atuais em que a ignorância se sobrepõe à sensibilidade e à beleza de nossa brasilidade, mas, felizmente, sempre enaltecida pelos nossos grandes poetas…

Lembro, com admiração e saudade, dos belos versos de Vinícius de Moraes, quando dizia em Pátria minha:

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei(…)
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!

Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda…
Não tardo!

Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
“Liberta que serás também”
(…)

Pátria minha, e perfuma o teu chão…
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.(…) Vinicius de Moraes.”

Se eu pudesse dizer ao ilustre mestre Aurélio Buarque, diria – muda esse verbete e adiciona ao vocábulo ‘brega’ o jeito de ser brasileiro, adiciona os batuques do Pelô da velha São Salvador, adiciona o ‘latim em pó’ que Caetano canta em à língua brasileira, que não deve ser pátria, mas mátria e frátria. Esse jeito mocoronga, caipira, querendo ser francês, esse jeito de rir de qualquer piada que, mesmo sendo de mal gosto, ri de nosso pé preto das senzalas, tudo isso está no baú de nossas quase perdidas memórias…

Ah, Brasil, como amo seu jeito caipira e brega de ser, como sinto saudades de você, como Vinícius sentiu em terra estrangeira. Estás tão longe de ti, tão longe do ‘Brasil da gente’ cantado pela Mangueira no passado, tão longe do Menino Jesus que, como ti, sempre pobrinho, nasceu em uma manjedoura. Ah, Brasil, se pudesse, como diz o poeta, te ninar e te mostrar como és grande, impávido colosso!

Não poderia me esquecer de trazer a simplicidade e a brasilidade de Assis Valente que, em sua grande sabedoria, pergunta na comovente canção:

“Eu pensei que todo fosse filho de papai Noel(…),

 com certeza já morreu ou então felicidade é brinquedo que não tem.”

Esse mesmo Assis Valente que fez um dos maiores sambas de nossa terra: Brasil Pandeiro.

“Brasil, esquentai vossos pandeiros, iluminai os terreiros, que nós queremos sambar”

Um natal com tantos mortos, repleto de dores, fomes e pobrezas, um natal tão distante de suas raízes, Brasil! Um natal em que me sinto tão solitária, como a estrela de Belém, que, apesar de tudo, mostrou ao Reis Magos o caminho até Jesus e que voltou majestosa hoje aos céus brasileiros.

Brasil, volta querido, com suas saias coloridas, seu samba, seu berimbau, volta! Quero chupar jabuticaba no pé ouvindo um baião de . Quem sabe, assim como Jesus renasceu, você resista e renasça também!

Nós te amamos e confiamos em ti! Feliz natal.

22/12/2020.

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Marcia Elizabeth Bortone – Doutora em Sociolinguística, Professora Universitária, escritora sensível, orientadora de inúmeras dissertações e Teses. É Membro Efetivo da ALANEG- Academia de Letras e Artes do Nordeste Goiano/RIDE e hoje mora em São Lourenço-MG.

 
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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