O escoamento

CERRADO, BERÇO DAS ÁGUAS, NA ROTA DEVASTADORA DO CAPITAL

Cerrado, berço das águas, na rota devastadora do Capital  

Este artigo foi publicado em uma versão diagramada e encartado na edição de março de 2018 do Le Monde Diplomatique Brasil.
Por Gerardo Cerdas Vega e Joice Bonfim/Le Monde Diplomatique
Para ler essa versão, com mais detalhes sobre o conflito por água em Correntina, no oeste da Bahia, e a atuação de fundos de pensão internacionais na especulação de terras no Cerrado: Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida.

Água: uma perspectiva global

O acesso à água potável, ao saneamento e à boa gestão dos ecossistemas de água doce são essenciais para a saúde humana, para a sustentabilidade ambiental e para a prosperidade econômica, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU).
Contudo, ao redor do mundo, as comunidades estão sendo despojadas dos direitos comunitários à terra e à água, e os mais pobres, especialmente os povos negros, indígenas, as mulheres e as , sofrem impactos desproporcionais que aumentam ainda mais sua vulnerabilidade.
Em 2018, a água estará no centro dos debates e das disputas. No marco do Dia Mundial da Água (22 de março), será realizado em Brasília o Fórum Mundial da Água, o grande evento das corporações que tratam da mercantilização e privatização da água em larga escala e que estarão reunidas numa grande vitrine de negócios para avançar sobre o controle dos recursos hídricos do planeta.
Nas mesmas datas e também em Brasília, o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama) reunirá movimentos sociais, organizações comunitárias, povos indígenas e tradicionais, artistas e intelectuais de diversas partes do mundo, que compartilharão experiências sobre a gestão coletiva da água como um bem comum e defenderão o acesso a esse recurso como um direito humano fundamental.

Menos de 1% da água doce existente no mundo encontra-se disponível para os ecossistemas e para uso humano.1 Esse dado coloca a gravidade da situação que enfrentamos conforme a da água aumenta, especialmente para a produção de commodities agrícolas, minerais, carne e energia em larga escala e para propósitos industriais, mas não para garantir o acesso humano à água e ao saneamento.
A questão central não é a escassez em seus termos gerais, e sim um processo de exploração intensa e apropriação de águas,2 no qual o recurso vai perdendo seu caráter de bem comum e se tornando mercadoria, um instrumento de acumulação que tem como pressuposto sua privatização. Até os executivos do Fórum Econômico Mundial de Davos tiveram de reconhecer que a agropecuária em larga escala já é a responsável pelo consumo de 70% de toda a água doce disponível no planeta.
Há que se considerar também a abissal existente no consumo per capita de água no mundo. Enquanto a média de consumo nos Estados Unidos é de 575 litros por pessoa por dia (l/pd), em Moçambique é de apenas 4 l/pd; na Etiópia, de 15 l/pd; e no Brasil, de 150 l/pd.
A crise hídrica atinge inclusive locais com histórica abundância de água, como no caso da cidade de São Paulo entre 2014 e 2016 e de Brasília, que sofre racionamento de água há exatamente um ano. Mais dramático ainda é o caso da Cidade do Cabo, na África do Sul, que tem previsão de ficar totalmente sem abastecimento de água em poucos meses – o que pode acontecer com todos nós.cerrado 2

O Cerrado em disputa

Atualmente, o Cerrado, que já conta com cerca de 52% do bioma devastado, é o principal território por onde avança o agronegócio no país e ainda a principal fronteira agrícola para sua expansão, sendo devastado mais rápido do que a .
O Cerrado perdeu 9.483 km2 de vegetação em 2015, um número que equivale a mais de seis cidades de São Paulo e supera em 52% a devastação na Amazônia no mesmo ano.3
As históricas desigualdades no campo foram aprofundadas pelo agronegócio, formando cidades-polo de altíssimo PIB per capita (que cresceram ao passo que o êxodo rural aumentava), porém nas quais a concentração de terra e de renda, o alto desemprego, a falta de moradia e o precário acesso a serviços públicos deixam os novos  rurais – grande parte dos quais expulsos de suas terras pelo avanço de latifúndios – ameaçados pela e pela falta de oportunidades em meio a trabalho sazonal, mal pagos e sem proteção social.
O caso de Correntina, na Bahia, cidade que recentemente protagonizou um conflito por água com repercussões nacionais e internacionais, é exemplar: ao mesmo tempo que tem um PIB per capita anual superior a R$ 25 mil, a pobreza atinge 45% da população rural do município e 31,8% da população em geral; o índice de Gini é de 0,927 (muito elevado) e os latifúndios ocupam 75,35% da área total dos estabelecimentos rurais.4

O avanço do agronegócio no Cerrado tem se dado principalmente nos locais onde se encontram as nascentes dos principais rios, com a apropriação das águas para irrigação e com intenso desmatamento. Segundo o Atlas da Irrigação produzido pela Agência Nacional das Águas, com base nos dados da FAO (ambos de 2017), o Brasil está entre os dez países com a maior área equipada para irrigação do mundo.
Somente entre 2006 e 2014 houve crescimento de 43,3% da área irrigada por pivôs centrais no país, o que significa mais de 380 mil ha. Da área equipada por pivôs centrais, 79,1% está localizada no Cerrado e nas regiões hidrográficas alimentadas pelos aquíferos Guarani, Bambuí e Urucuia.
Por outro lado, também devemos considerar o histórico de apropriação das águas para produção de eletricidade no Cerrado, mediante centenas de projetos de médio e pequeno porte, entre eles as usinas Cana Brava e Serra da Mesa (GO), São Salvador e Luiz Eduardo Magalhães (TO), Estreito (TO/MA) e Tucuruí (PA), o que aumenta a pressão sobre o recurso.
Outra atividade que impacta severamente o bioma é a mineração, principalmente nos estados de Minas Gerais e Goiás, onde a exploração de ouro (que usa o mercúrio para sua extração), fosfato, ferro, amianto, níquel e outros minérios tem rebaixado e contaminado os lençóis freáticos, assoreado os rios, destruído nascentes, córregos e veredas e atingido gravemente a vida das populações locais.
Em Goiás, por exemplo, destaca-se a presença das empresas Orinoco Gold, Yamana Gold, Anglo Gold Ashanti, Anglo American, Vale S/A, Votorantim, responsáveis por fazer do território goiano o terceiro maior produtor minerário do país.
E o Brasil ainda sangra com a devastação do Rio Doce, que ceifou 21 vidas humanas e despejou dezenas de milhões de toneladas de rejeitos sobre o rio, seus afluentes e no Oceano Atlântico, com dimensões devastadoras incalculáveis.
cerrado flower 1395805 Paulo Ribas JrFoto: Paulo Ribas Jr.

As comunidades tradicionais e indígenas do Cerrado e a água

Com fundamento em um ideal de “eficiência” e “proteção”, transferir a gestão da água para o mercado e agentes privados individuais é um dos objetivos da política privatista dos recursos hídricos.
Como a expansão do agronegócio, da mineração e das hidrelétricas se dá sobre territórios previamente ocupados e utilizados por povos indígenas e comunidades tradicionais, a apropriação intensiva da terra e da água no Cerrado tem atingindo duramente essas populações e seus territórios. Atualmente, esse bioma tem se configurado como o segundo com maior densidade de conflitos por terra/água no país, só atrás da Amazônia.
Esses processos de privatização dos bens comuns e expropriação atingem especialmente as mulheres e seus direitos de uso da terra e das águas. 
As mulheres desempenham um papel fundamental na gestão comunitária das águas e, com essa relação autônoma ameaçada, resta-lhes lidar com poucos recursos para tratar e alimentar as crianças, enfermos e anciãos, bem como cuidar da rotina e higiene da casa e das hortas e sistemas agroflorestais, tarefas que foram a elas destinadas em decorrência da desigualdade histórica das relações de gênero.

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Alternativas para o uso sustentável da água no Cerrado: as práticas das comunidades

É importante ressaltar, entretanto, que os povos indígenas, quilombolas, geraizeiros, ribeirinhos, vazanteiros e outros que vivenciam esses processos constantes de expropriação de suas terras, águas e territórios e convivem com mudanças constantes e violentas na dinâmica social que historicamente construíram continuam resistindo, afirmando seus modos tradicionais de vida, de guardiões dos recursos naturais – sobretudo das águas – por meio da lógica dos bens comuns. Alternativas para o uso sustentável da água no Cerrado: as práticas das comunidades
Os sistemas agrícolas, pastoris e extrativistas dessas comunidades tradicionais do Cerrado são, em geral, pouco conhecidos e valorizados.
Práticas como a itinerante de corte e queima, de vazante e de irrigação em pequena escala; a pesca e a caça; o conhecimento e uso das espécies vegetais e a criação de gado solto em áreas comuns são parte das estratégias de produção e reprodução das comunidades cuja viabilidade socioeconômica envolve um manejo sustentável da água e da terra, alinhado com os princípios da agroecologia.
A gestão sustentável das águas realizada pelos povos do Cerrado se baseia em seus próprios usos tradicionais e é voltada para a reprodução física, econômica, social e cultural da comunidade. Por exemplo, açudes, canais comunitários de irrigação (regos), produção diversificada de alimentos e mutirões compõem o repertório das práticas tradicionais de uso e gestão das águas das comunidades do Vale do Rio Arrojado, no oeste da Bahia.
A construção dos regos é uma prática essencial para a reprodução econômica, social e territorial dessas comunidades, sendo fundamental para os períodos com baixa intensidade de chuva e para a diversificação da produção, já que com eles é possível produzir diversidade de frutas, verduras e legumes e fornecer água para animais de pequeno porte.

Os povos e comunidades do Cerrado também têm papel fundamental na recuperação e preservação das nascentes, muitas vezes degradadas pelo agronegócio. Recuperar uma nascente ou quase seca, ver a água jorrar novamente e dar vida às matas ciliares. As iniciativas de recuperação de nascentes são inúmeras nesse bioma e em alguns locais fazem até parte das aulas escolares.
Essas tecnologias comunitárias de uso da água são encontradas em todo o Cerrado. No entanto, essas práticas estão sendo permanentemente ameaçadas, o que motiva as ações de resistência das comunidades.
O oeste baiano registra o maior número de conflitos no período de 1985 a 2016 em nível nacional. Somente entre 2002 e 2015 houve 23 conflitos nessa região, dos quais 19 (82,60%) aconteceram após 2008. O município de Correntina se destaca com 41 conflitos nos últimos 32 anos, sendo líder em reincidências.5

Conclusão

A imensa social e natural do Cerrado está ameaçada de se perder. No ritmo atual de devastação, o bioma como tal pode desaparecer para sempre já em 2030.
As consequências socioambientais desse processo são dramáticas e ainda serão mais, como diversos analistas e organizações sociais vêm alertando, caso não seja feito um esforço articulado para impedir que essa expansão para a produção de commodities continue nos moldes de violência, predação e empobrecimento que a tem caracterizado.
Campanha Nacional em Defesa do Cerrado “Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida”, que reúne uma expressiva rede de organizações sociais pela defesa do Cerrado e de seus povos, tem uma petição online recolhendo assinaturas para a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n. 504, que reconhece os Cerrado e Caatinga como patrimônios nacionais, como são a Amazônia, o Pantanal e a Mata Atlântica.
A Campanha também tem ampliado o debate acerca da garantia dos direitos territoriais das comunidades indígenas e tradicionais do Cerrado, por entender que esse é o primeiro passo para a conservação do que resta do bioma e de seus recursos hídricos fundamentais.
As comunidades que vivem no Cerrado praticando por gerações formas de gestão comunitária e descentralizada baseadas no uso coletivo e sustentável do bem comum são fundamentais para garantir a escala necessária para a conservação da biodiversidade do Cerrado e a manutenção dos ciclos de carbono e água.
Uma importante bandeira da campanha e dos povos e comunidades do Cerrado é que haja efetiva democratização da água, sendo tratada como um direito humano e um bem comum, e não como uma mercadoria. É urgente que esse debate seja feito de modo a impedir que a devastação do Cerrado continue a todo vapor, sem que a sociedade brasileira e global nem sequer saiba tudo o que está em jogo para seu futuro.
*Gerardo Cerdas Vega, sociólogo, é analista de políticas e programas da ActionAid no Brasil e membro da coordenação da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado; Joice Bonfim, advogada, é membro da AATR-BA e integrante da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.
1 De toda a água do planeta, 97,5% é salina. Do restante, cerca de 70% conserva-se em geleiras. Assim, menos de 1% do total da água doce está efetivamente disponível para uso humano e para a continuidade da vida no planeta como um todo.
2 O consumo real de água permanece invisibilizado porque não considera o consumo indireto, pela indústria e o agronegócio, por exemplo. Assim, um único quilo de carne bovina demanda 15,5 mil litros de água para ser produzido e comercializado. A produção de um smartphone consome em torno de 12.760 litros de água, e uma calça jeans, 10.850.
3 Observatório do Clima. Disponível em: <www.observatoriodoclima.eco.br/>.
4 Oxfam. Disponível em: <www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos>.
5 Tássio Barreto Cunha, Do oculto ao invisível: terra-água-trabalho e o conglomerado territorial do agro-hidronegócio no oeste da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista. Tese de Doutorado, 2017.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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