Campanha pede respeito às tradições das comunidades quilombolas
Atraso na emissão de licenças para o plantio impacta a segurança alimentar de comunidades tradicionais no Vale do Ribeira, em São Paulo
A roça de coivara é a forma que os quilombolas do Vale do Ribeira, no interior de São Paulo, e outras tantas comunidades tradicionais espalhadas pelo país, produzem sua comida. Ela consiste em colocar fogo em um pedaço de mata, que fixa os nutrientes de forma rápida no solo, e permite o cultivo de alimentos sem a necessidade de qualquer outro insumo, como fertilizantes.
Apesar de utilizar fogo, esse modo de plantio respeita o tempo de regeneração da floresta. Há 200 anos essa convivência harmoniosa entre pessoas e floresta é parte central do manejo de recursos naturais do Vale do RIbeira, que contribui para a preservação da Mata Atlântica.
Foi assim que a região conseguiu manter uma das maiores concentrações do bioma no Brasil. 21 % do que ainda existe de Mata Atlântica está ali. “Você anda pelo Vale do Ribeira (fora das comunidades) e é tudo pasto, bananal. A gente está aqui e preserva há quanto tempo?”, questionou uma moradora do quilombo São Pedro, Regiane Lilian, em documento elaborado pelo Instituto Socioambiental.
O problema é que ao longo do tempo, na tentativa de preservar a natureza, a legislação foi colocando entraves na convivência de seres humanos com a floresta. Se o ser humano à frente do agronegócio impacta de forma negativa o meio ambiente, há milênios já sabemos viver de junto à floresta de forma que todos saiam ganhando.
Secretaria de Meio Ambiente, Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), Fundação Florestal e Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) dividem a responsabilidade pela emissão do documento, de acordo com a categoria da área, como se está em território quilombola ou área de proteção ambiental.
A natureza não se importa muito com papelada e, para que seja seguido seu ritmo, os quilombolas devem fazer tudo no tempo certo. A época ideal para a abertura da área é julho, quando o clima está seco e, assim, permite que a vegetação fique ideal para a queima. O plantio costuma ocorrer em agosto e setembro, e a colheita a partir do próximo ano, dependendo da espécie de cultivar.
Por isso, é essencial que as autorizações cheguem, no máximo, até junho do mesmo ano, para que os quilombolas possam iniciar o corte da mata no momento correto. “A demora é um meio de desanimar. A nossa roça tem tempo para tudo: tem o tempo de escolher o lugar, tem o tempo de roçar, tem o tempo de derrubar”, explica dona Diva, 72 anos, do quilombo Pedro Cubas de Cima.
Entre 2015 e 2017, a licença para a abertura das roças atrasou em 45% dos pedidos, aponta levantamento realizado com entrevistas com 193 quilombolas de 14 comunidades pelo Instituto Socioambiental. Desse total de entrevistados, 76% deixou de plantar. São ao menos 90 roças que deixaram de ser feitas. A estimativa é que 270 mil quilos de alimentos deixaram de ser produzidos em 2017.
As consequências, no entanto, não se restringe aos próprios quilombolas. As sementes, orgânicas e não modificadas, precisam ser plantadas pouco depois de colhidas. Com o atraso, elas estragam e espécies de alimentos estão desaparecendo.
Um estudo do grupo de Ecologia Humana de Florestas Neotropicais, da Universidade de São Paulo, coordenado pela bióloga Cristina Adams, mostra que, entre 1986 e 2000, houve uma perda de 52% das variedade agrícolas locais. São espécies de arroz, feijão, cará, mandioca, mandioca, banana, abóbora que nunca mais poderão ser plantadas.
De acordo com Maria Sueli Berlanga, da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE), essa demora contribui para o esvaziamento das comunidades tradicionais, abrindo espaço para outros interessados na área. Há 92 requisições para mineração na região.
“Tem uma política de esvaziamento do território, e como faz essa política? Coibindo toda a ação das comunidades tradicionais”. afirma Sueli. “Porque tanta dificuldade pra fazer uma roça que eles tão fazendo há séculos? É uma política de impedir que a população viva da própria cultura”, conclui.
Por isso, o Instituto Socioambiental lançou nesta sexta-feira, 17 de agosto, a campanha “Tá Na Hora de Roça”. A petição online pede que o Governo do Estado de São Paulo trabalhe em conjunto com os órgãos responsáveis de modo a agilizar o processo de licenciamento nessas comunidades tradicionais de modo que elas consigam acompanhar o ritmo da natureza.
ANOTE AÍ
Fonte: Revista Galileu