O Apu Auzangate e a dimensão do sagrado na Cordilheira dos Andes

O Apu Auzangate e a dimensão do na Cordilheira dos Andes – 

“O sagrado está no olhar de quem vê, e quem vê uma montanha apenas como uma pilha de minérios a serem transformados em quinquilharias, certamente não pode, ou não consegue, ver a dimensão sagrada de tudo que nos cerca.”Ailton Krenak 

É a segunda vez que cruzo os Andes naquela altura. Na primeira, em 2009, realizei a façanha em uma moto 125 cilindradas. Acima de 4 mil metros de altura ela mais fazia barulho do que andava. Poderia ter escrito um artigo sobre como cruzar os Andes em um barbeador elétrico, já que era o que sugeria o som do motor: um barbeador elétrico. O pouco oxigênio das alturas afeta drasticamente o rendimento dos motores.

Aliás, não apenas os motores, mas de toda a . Naquela ocasião tive de fazer a subida em duas etapas. Uma parada em Marcapata, onde me assombrei com a história de condores atados nas costas de touros: costume andino que desconhecia e que estava representado em uma estátua de bronze de bronze na praça da cidade.

Recordo-me do aconchegante de uma pensão, onde moradores locais conversam animadamente em quétchua. Um deles, um jovem médico, tenta me fazer entender a formação das cadeias de montanha. É inútil. Meus conhecimentos geográficos não são suficientes para compreender as cadeias de montanhas, seus meandros e, sobretudo, o significado para aquela gente.

Mas eles também ficam surpresos e estupefatos quando lhes digo que tanto o Madre de Dios, que corre pela face ocidental da montanha, inicialmente com o nome de Iñambari, quanto o Vilcambamba, que nasce na mesma cadeira de montanhas e corre no sentido contrário pela face oriental, unem-se novamente a quilômetros dali, quando o rio Madeira encontra o Amazonas.

Olham-me com uma certa perplexidade. Era como se para aquele a proeza das águas contornarem o incontornável Auzangate fosse impossível. Ali a geografia era uma questão de sentir na pele da face, nos músculos das pernas e no ar dos pulmões, e em seus corpos eram marcados pela grandeza do Auzangate. Os rios serpenteantes das infindáveis planícies da não fazem parte desta realidade.

A vantagem de subir em duas etapas, foi o tempo necessário para uma adaptação à altitude. Quando cheguei à Abra Piurani, a 4237 mts, não senti absolutamente nada além do frio, com a proverbial ajuda, é claro, das folhas de coca.

À minha frente, está ele, o Auzangate: um trono celestial que se ergue em direção ao firmamento, impondo à geografia, sua condição divina. Talvez por isso, haja tantas oferendas na margem da estrada. A maioria são montículos de pedra em que são depositadas folhas de coca, mas há também algumas de bebida e retalhos de lã colorida.

Intuitivamente, faço o mesmo, e oferto ao Auzangate um punhado de folhas de coca, arrumadas em um montículo de pedras. Uma singela homenagem ao gigante cujo olhar das alturas, é inescapável.

Desta vez estou com um equipamento melhor. Minha moto tem 250 cc e injeção eletrônica, o que significa uma capacidade de auto regulagem. Com isso, a moto perde pouca potência e a subida acontece de uma única vez. Mas, desta vez quem sentiu fui eu. Faltando alguns quilômetros para o ‘abra’, sou tomado de uma vertigem, como quem olha para baixo do alto de um arranha céu.

Concentro-me, e depois de serpentear cuidadosamente, e sem nenhuma pressa pela estrada, finalmente consigo chegar ao ‘abra’, já totalmente consciente que é o poder do Auzangate que rege minha .

Desço da moto e apesar da belíssima paisagem, nem sequer penso em selfie. Quero mesmo é me por de joelhos aos pés do Auzangate, agradecer por ter chegado até ali, e pedir proteção para o seguimento da viagem. Me vem a memória um velho amigo, o acreano de origem libanesa Gamal Murad. Tão apaixonado quanto eu por aquela montanha, Gamal sofreu um acidente fatal naquelas altitudes, no final do último ano. A lembrança de que era um responsável motorista e experiente naquelas estradas, somente reforça meu temor de percorrê-las.

Dou poucos passos e a vertigem me domina por completo. Faço uma pequena oferenda de folhas de coca, pedindo ao Auzangate que me permita ir e voltar daquela viagem. Substituo a coca já mascada por um novo chumaço e quando vou subir na moto, sinto um quase desmaio. Aí pela frente vem a descida, o que torna este trecho especialmente mais perigoso. A moto morre e não consigo dar na partida novamente. Sou obrigado a deixar que pegue um embalo na descida.

Olho para os lados. Nenhum caminhão. E deixo que a montanha faça o que minhas pernas, naquelas condições, jamais poderiam. Felizmente, não é preciso muita descida e ela logo pega no tranco.

Vou serpenteando montanha abaixo com atenção redobrada. Se a face ocidental dos Andes estava relativamente quente e , a face oriental está incrivelmente está fria. O degelo dos Andes parecem acentuar a sensação térmica do frio. Mas o frio intenso também permite sentir a radiação solar das paredes das montanhas. Aquele SENTIR me traz algo de devoção, análogo talvez ao que um fiel sinta durante um culto em sua igreja. Ali está a maior de todas as catedrais, com paredes de rochas, vitrais de gelo e fontes de água cristalina, aquecidas e iluminadas pelo Sol no firmamento.

Penso que estou tendo ali, um vislumbre do que possa ser a cosmovisão andina: um sentido de devoção não voltado ao abstrato, mas às coisas materiais e concretas que determinam nossas vidas. Por isso talvez, o epíteto APU Auzangate – Senhor Auzangate. São senhores absolutos da vida ali afinal, a montanha, e o Sol.

E como vivem afinal, naquelas altitudes, aquele povo de face rosada, queimada pelo Sol, pastoreando suas lhamas, em casas feitas de rocha e adobe. Sabem melhor que ninguém quem são os senhores que ensinam a viver em condições tão extremas.

A indicação de uma pequena parada ‘caldo de cordeiro’, parece promissora. E de fato é. O caldo e um chá de coca e um pouco de maca me põem de pé novamente. Mas eu, o garoto tropical, cometo a burrice de deixar o capacete no espelho da moto.

Ao vesti-lo novamente me dou conta da burrada: havia se convertido em um bloco de gelo. O resultado do frio agudo sobre as têmporas é uma persistente dor de cabeça. Mais à frente vem chuva. ‘É só um sereno’, penso eu, mas o ‘sereno’ ainda que não se compare com as chuvas torrenciais com que me acostumei na Amazônia, traz um frio que penetra até os ossos. As luvas já não adiantam de muita coisa e minhas mãos estão dormentes. Nas pernas, anuncio de câimbras. E na alma o medo de que a falta de sensibilidade me leve a um acidente.

Paro a moto e urino sobre minhas mãos: um jeito estranho, mas eficaz de trazer de volta a sensibilidade perdida com o frio.

Serpenteio a estrada até o seu fim em Urcos e depois em uma quase reta até Cuzco.

Já depois de um banho e aquecido sob cobertores, as redes sociais trazem notícias sobre minha cidade, Cruzeiro do Sul, enfrentando uma alagação sem precedentes históricos.

“O Juruá é nosso APU’, penso eu, em uma improvável adaptação amazônica da cosmovisão andina.

Mas aqui é ele afinal, quem determina nossa vida. Suas infindáveis curvas, serpenteando amazônia adentro é que dizem como devemos viver por estas bandas. Se há para habitar, é por que o rio assim permite. Se a serpente se mexe -e ela se mexe – águas e terras cambiam seus lugares e somos nós, e não Ele, o APU Juruá, que tem de se adaptar.

“Não faz sentido essa divisão entre material e espiritual. Essa é uma divisão da mente do homem branco, do europeu, do dito civilizado, que precisa voltar sua devoção ao abstrato, para se livrar do sentimento de culpa de quem profana o mundo que habita”.

Tais palavras me foram ditas por um ‘Amauta’ (sábio) andino, anos atrás e encontram eco, em uma frase, quase uma oração diria, dita por Ailton Krenak: “O sagrado está no olhar de quem vê, e quem vê uma montanha apenas como uma pilha de minérios a serem transformados em quinquilharias, certamente não pode, ou não consegue, ver a dimensão sagrada de tudo que nos cerca.”

ANOTE AÍ:

Leandro Altherman

Leandro Altheman é jornalista, formado pela ECA-USP. Radicado há 18 anos em Cruzeiro do Sul -Acre, é autor do livro Muká, a raiz dos sonhos – um relato pessoal sobre a imersão do autor no universo sagrado do povo  Yawanawá. Para saber mais sobre o trabalho de Leandro Altheman, visite seu blog: www.terranauas.blogspot.com

Leandro nos foi apresentado pelo indigenista acreano Jairo Lima, parceiro da Xapuri. Jairo, também escritor, publica seus textos semanais no blog www.cronicasindigenistas.blogspot.com.br . Vale a pena conferir!

Sobre a Cordilheira dos Andes –  Com uma extensão de mais de 7.00 km, a Cordilheira dos Andes, a mais extensa cordilheira do Terra, consiste em um conjunto contínuo de  montanhas que margeiam quase a totalidade da costa ocidental da América do Sul. Embora relativamente estreita, mantendo uma largura que varia entre 200 e 700 km, a Cordilheira dos Andes, também conhecida como “os Andes”, alcançam uma altitude média de 4.000 metros e se espalham por sete países: Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e Argentina. O Aconcágua, seu pico mais alto, com 6.962 metros de altitude, fia na Argentina.  O clima, gelado ao longo de toda a Cordilheira, e a escassez de oxigênio nas alturas são os grandes desafios das populações nativas da região andina, mas também, e principalmente, das pessoas que a visitam. Fonte desta informação e do mapa abaixo: Emerson Santiago/http://www.infoescola.com

cordilheira dos andes

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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