STF tem o dever de decidir de acordo com a Constituição e a lei
Todo esse quiproquó a respeito do problema do momento de execução da pena privativa de liberdade aponta para uma jurisprudência altamente inconsistente, que antes de orientar as partes, as demais instâncias judiciais e o público, serve para desorientá-los.
Por Marcelo Neves
Exemplo típico de inconsistência jurídica do Supremo Tribunal Federal são as sucessivas decisões sobre a presunção de inocência (CF, art. 5º, inciso LVII) e a prisão (art. 283 do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011) até e após, respectivamente, “sentença condenatória transitada em julgado”, excetuadas as hipóteses de flagrante delito e prisão preventiva ou temporária. Nesse caso, não só os fundamentos são contraditórios, mas também os dispositivos dos acórdãos. As decisões variam ao sabor do contexto político particularista.
Antes do julgamento do Habeas Corpus nº 84.078/MG, em 5 de janeiro de 2009, o tema constitucional não foi enfrentado diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, mas eram comuns os casos em que o Judiciário decidia pela prisão antes de transitada em julgado a sentença, mesmo que não se tratasse das exceções legais. Com referência ao art. 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho 1984 (disposição legal que, antes, trata da progressão da pena privativa de liberdade) e com invocação de uma série de precedentes, foram aprovadas as súmulas 716 e 717 do STF em 24 de setembro de 2003, que passaram a servir de esteio à orientação do Supremo pela prisão antes do trânsito em julgado.
A partir do julgamento do Habeas Corpus nº 84.078/MG, em 05/01/2009, há uma virada radical, constitucionalizando-se a questão com base no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Também serviu de suporte o art. 147 da Lei nº 7.210/1984: “Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares”.
O STF decidiu, então, por uma maioria de sete votos a quatro, que a “prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar”[3]. Essa posição foi fortificada, no plano legislativo, com a alteração do art. 283 do CPP pela Lei nº 12.403/2011, que deu a seguinte redação a esse dispositivo: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.” A solução tomada é evidentemente a mais consistente com a Constituição Federal e também com o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984).
Assim, contrariou-se totalmente a decisão anterior de 2009, sem considerar a alteração do art. 283 do Código de Processo Penal pela Lei nº 12.403/2011. Seguindo nessa orientação, mas com uma nova maioria, o STF, no julgamento do Habeas Corpus nº 152.752/PR, em 4 de abril de 2018, decidiu pela manutenção da posição afirmada em 2016, ou seja, a prisão após condenação em segunda instância[5]. Os Ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, vencidos com votos excepcionais, sustentaram estranhamente a constitucionalidade da prisão após a condenação pelo Superior Tribunal de Justiça.
A respeito dessas variações ao sabor das circunstâncias, impressiona a inconsistência na cadeia decisória de um mesmo ministro, conforme idiossincrasias decisórias e políticas do Ministro a cada caso. Assim, o Ministro Gilmar Mendes, que votou em 2009 (HC 84.078/MG) favorável à prisão apenas após o trânsito em julgado de sentença condenatória, foi a favor em 2016 (HC 126.292/SP) à prisão após condenação em segunda instância e, por fim, em 2018 (HC 152.752/PR), defendeu esdruxulamente a prisão após condenação pelo Superior Tribunal de Justiça (a mesma mudança foi feita pelo Ministro Dias Toffoli de 2016 para 2018). Por sua vez, a Ministra Rosa Weber, que, em 2016 (HC 126.292/SP), votou pela prisão somente após o trânsito em julgado de sentença condenatória, deu voto favorável à prisão após condenação em segunda instância em 2018 (HC 152.752/PR), com a alegação inusitada de que estaria respeitando o “colegiado”.
Além desse vai-e-vem na questão do momento constitucionalmente legítimo de prisão de pessoa condenada à pena privativa de liberdade, o processo de controle abstrato mediante as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) nos 43 e 44, que têm como objeto a declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, após vários adiamentos, “foi excluído do calendário de julgamento pelo Presidente” do STF em 10 de abril de 2019. Tema de tanta relevância, referente à privação de liberdade de milhares de pessoas, deixou de ser julgado por tanto tempo ao sabor das circunstâncias, dependendo de posturas idiossincráticas incontroláveis do Presidente do STF.
Todo esse quiproquó a respeito do problema do momento de execução da pena privativa de liberdade aponta para uma jurisprudência altamente inconsistente, que antes de orientar as partes, as demais instâncias judiciais e o público, serve para desorientá-los. É verdade que quem não sabe o rumo que segue, quem não tem mapa nem bússola, não pode servir de parâmetro para ninguém que busca um caminho acertado.
Na última segunda-feira, dia 14 de outubro, o Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, enfim, pautou para esta quinta-feira, 17 de outubro, o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) nos 43 e 44, que têm como objeto a declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal. Trata-se exatamente de Ações que visam à retomada do bom senso constitucional, para se determinar que, salvo as exceções legais (prisão em flagrante ou de natureza cautelar), a prisão só deve ocorrer após julgamento condenatório transitado em julgado.
Essa orientação corresponde ao teor literal do art. 283 do CPC, na redação dada pela Lei nº 12.403/2011, que nada mais fez do que legalizar decisão do STF conforme o sentido do art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Não cabem tergiversações, como a afirmação de que, por morosidade ou ação parcial do Judiciário, criminosos se beneficiam das referidas regras constitucional e legal, podendo mesmo beneficiar-se da prescrição. Não se justifica que alguém seja preso injustamente porque o sistema jurídico e o Judiciário funcionam deficientemente.
Mais grave, porém, é a posição absurda que defende a prisão após decisão condenatória do Superior Tribunal de Justiça. Tal posição, sustentada pelo Presidente do STJ, Ministro Dias Toffoli, sob evidente tutela do poder militar, foi secundada pelo Ministro Gilmar Mendes. Trata-se do disparate maior, pois não encontra o mínimo de sinal de sustentação na ordem jurídica em vigor e tudo indica que visa apenas a impedir a liberdade de Lula no que diz respeito à condenação referente ao chamado “caso do tríplex”.
Não é possível que o STF admita essa tese acintosa à ordem jurídico-constitucional brasileira. Basta de disparates e tergiversações. Espera-se que os membros do STF, na decisão desta quinta-feira, respeitem a dignidade do cargo que ocupam e decidam de acordo com a Constituição e a lei: 1) o art. 283 do Código de Processo Penal não ofende a Constituição Federal, antes a concretiza no plano legal; 2) isso significa que, não sendo caso de prisão em flagrante ou de natureza cautelar, ninguém deve ser preso, de acordo com a Constituição e a lei processual penal brasileira, senão após sentença condenatória transitada em julgado. É algo simplório, mas tem de ser repetido diante de tantas pusilanimidades e das pressões inconstitucionais dos militares.
“Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória” (STF, Súmula 716, aprovada na sessão plenária de 24/09/2003, DJ de 09/10/2003, p. 6; DJ de 10/10/2003, p. 7; DJ de 13/10/2003, p. 6). “Não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial” (STF, súmula 717, aprovada na sessão plenária de 24/09/2003, DJ de 09/10/2003, p. 7; DJ de 10/10/2003, p. 7; DJ de 13/10/2003, p. 7).
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