CHICA DA SILVA: A PEPITA NEGRA DO ARRAIAL DO TIJUCO

Chica da Silva: A pepita negra do Arraial do Tejuco

Francisca da Silva de Oliveira ganhou fama e fortuna ao conquistar o coração do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira. Viveu no período colonial da mineração no Brasil, no século XVIII. Nunca se sabe onde termina a real e começam as narrativas do imaginário popular.

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O certo é: Chica da Silva deixou um rastro de episódios que colaboram para o empoderamento das mulheres. Chica, ao mesmo tempo é realidade e, também, muita ficção. Afinal, como uma negra poderia assumir importantes papéis naquela sociedade, se ainda hoje, a ascendência negra incomoda?

Acerca de seu nascimento não se tem data certa. Estima-se que tenha sido entre 1731 e 1735, no povoado de Milho Verde, perto do arraial do Tejuco, atual cidade de Diamantina-MG. Era filha de um português com uma africana e tornou-se escrava, ainda adolescente, do médico Manuel Pires Sardinha, com quem teve dois filhos, deixados com o pai. Estes filhos, posteriormente, foram educados na Europa, acompanhando os outros quatro filhos do contratador.

Foi comprada por João Fernandes no final do ano de 1753 e conquistou sua alforria pouco depois. João Fernandes era desembargador do Tribunal da Relação do Porto e juiz do Fisco das Minas Gerais. Não era comum que os donos alforriassem suas escravas ainda tão jovens; portanto, suspeita-se de que o contratador tenha se apaixonado por Chica e tenha decidido fazê-la dona de casa e com ela formar uma família.

O detalhe é que o contratador de diamantes João Fernandes já era oficialmente casado com Maria de São José, natural do Rio de Janeiro e com ela tinha um filho. A mulata Chica passou a viver em concubinato com João Fernandes, que não botou reparo nesse detalhe. Sob pressão e poderio do contratador ou sob sua própria imponência, Chica tornou-se Francisca e foi descendo goela abaixo da elite branca mineira.

Depois que ganhou a liberdade, foi morar em uma grande casa, construída em forma de castelo, com capela particular e um teatro totalmente equipado, o único existente na região. O contratador satisfazia aos seus mínimos desejos e Chica da Silva passou a viver em pleno luxo. Com o contratador, ela teve 13 filhos – nove mulheres e quatro homens.

Viveu 17 anos com João Fernandes, que nunca teve dúvidas sobre a paternidade dos filhos, legitimando e tornando todos eles herdeiros de todo o seu . Por esse lado da história podemos encontrar a personagem como uma mãe de família dedicada, leal e religiosa, contrapondo-se com a que costumeiramente sabemos: lasciva, infiel e libidinosa, entre alguns predicativos que lhe constam.

Existe uma conta fácil de fazer – e que deve ser feita – para avaliarmos o comportamento de Chica da Silva: foi casada por 17 anos, com o mesmo marido. Teve 13 filhos, o que resulta em um filho a cada 1 ano e 4 meses, em média. Que tempo lhe sobraria para a devassidão? Chica morreu por volta dos 60 anos, e sabe-se que sofria de reumatismo.

Trajetória 

De sua trajetória, precisamos ressaltar que era uma lutadora e buscava a plena realização de seus . Para atingir seus objetivos resolvia, a seu modo, os empecilhos de seu caminho. Conta-se que mandou cortar a boca de uma rival. de personalidade forte e opiniática causava burburinho nos espaços por onde suas muitas saias esvoaçantes e a peruca loira de cabelos encaracolados passavam. É, sobretudo, uma mulher vencedora de desafios e preconceitos.

Viveu o peso de ter sido escrava e de doar-se a um relacionamento inter-racial, zelou pela dos filhos, tomou frente aos negócios da família e administrou, sozinha, os bens do casal depois da ida de João Fernandes para Portugal, por ocasião do falecimento de seu pai e divisão de sua herança paterna.

Na história oficial existem registros de sua biografia, todos anotados por homens e brancos. Condição esta que dá ao relato uma parcialidade machista de pessoas que não a conheceram pessoalmente e de apontamentos feitos sem documentação, prova ou fonte histórica.  Pode-se perceber essa afirmativa pelos adjetivos que lhe são atribuídos: “dona de um apetite sexual insaciável” ou que “Não possuía graça, não possuía beleza, não possuía espírito; enfim, não possuía atrativo algum que pudesse justificar uma forte paixão”. Outros a descreveram como sádica e cruel, lasciva e sedutora. Tais afirmações reforçam os estereótipos contra que conseguiram ascensão financeira e social.

Não obstante, registra-se que Chica da Silva viveu segundo os padrões morais impostos a sua época. Deixou prole com devida importância social e, por fim, foi sepultada no cemitério da Igreja de São Francisco de Assis – um privilégio da elite branca e dos de bem e moral ilibada integrantes de importantes irmandades. Dessa maneira, a interpretação que daremos à figura de Chica dependerá de nossos referenciais acerca do racismo, do machismo e do preconceito.

“Chica que manda”

Chica da Silva, por sua expoente voluntariedade, recebeu o apelido de “Chica que manda”. Conta-se que ela frequentava as missas coberta de diamantes e acompanhada por um séquito de 12 mulatas muito bem vestidas. Chica, como senhora e dona, possuía vários escravos, tendo-se registros em documentação de que Chica da Silva chegou a ser dona de pelo menos 104 escravos, negros como sua mãe ou mulatos como ela.

Essa quantidade de escravos era muito mais elevada que a média em Minas Gerais daquela época. Chica da Silva agregava valores aos bens da família através da exploração econômica dos seus escravos, que eram alugados e empregados nas minas, além de outros que trabalhavam na pecuária e ou eram escravos de ganho. Não existem documentos ou evidências de que Chica tenha concedido liberdade a seus escravos.

A vida de Chica foi revisitada por diversos autores em romances, peças de teatro, poemas, e também no cinema e na televisão. Podemos dizer que Chica da Silva subiu degraus e não se tornou voz libertária de sua raça, entretanto, mesmo com aceitação dos valores e hábitos da elite branca, transformou-se em um mito e nos deixou história.

Iêda Vilas-Bôas – Escritora . Falecida em 08/04/2022.

CHICA DA SILVA: A PEPITA NEGRA DO ARRAIAL DO TIJUCO
Reprodução

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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