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MARA RÉGIA: A VOZ DA FLORESTA

MARA RÉGIA: A VOZ DA FLORESTA

Mara Régia: A voz da floresta

“Mara Régia, já te salvei tantas vezes das águas…”
– Como assim?
“Quando eu tô lá na ponte ensaboando a roupa te boto lá falando.
De repente tu escorrega no sabão e tenho de correr pra te salvar da correnteza.”
Maria do Boiadeiro, ouvinte de Mara Régia no Pará, em texto de Eliane Brum

Por Zezé Weiss

Não tem comunidade da Amazônia que não conheça Mara Régia, a moça do rádio, umas das vozes mais ouvidas e mais queridas dos povos da floresta. Há quase 30 anos, Mara Régia fala com as mulheres da floresta, por meio do programa Natureza Viva, em rede nacional a partir de Brasília, direto dos estúdios da Rádio Nacional da Amazônia.

É íntima de todas elas. Tão íntima ao ponto de se querer saber notícias da amiga distante, em um sentimento lindamente retratado por Eliane Brum em sua belíssima “Carta da Floresta”, conforme relato da também jornalista Daniela Arbex em crônica publicada na coluna “Em terra de cego”, do jornal Tribuna de Minas:

“_ Como vai a Mara Régia, perguntou uma nativa a Eliane, quando ela trilhava a Transamazônica para contar história na década de 1990. Sem saber de quem se tratava, a jornalista assumiu seu desconhecimento.

– Mas que repórti bem de boa você deve sê, heim, mulé. Mara Régia vive lá onde você vive, não sabe? Mas é como se fosse da minha família!

Eliane continuava em apuros.

– Mara Régia é da rádia. Nunca ouviu, não? A gente aqui ouve ela tudinho, disse o marido da “mulherzinha morena” que, com pena da jornalista, saiu em seu socorro. ”

Domingo vai, domingo vem, lá está Mara Régia no ar, navegando os rios nas ondas do rádio, como os Regatões da Amazônia que, no passado, levavam mercadorias e recados para os ribeirinhos. É desse jeito que compartilha lições aprendidas em seus encontros com as parteiras, raizeiras, lideranças indígenas, trabalhadores rurais.

Como se fosse uma mulher-ponte, num incessante Leva e Traz, título de um dos quadros de seu programa revista, revela talentos como o da cantora Maria Maia, do Nortão do Mato Grosso, e poesias como a de uma “Maria Quarqué”, que vive em Xinguara (PA), com o povo do campo, das águas e da floresta. Mas Mara fala igualmente com a cidade através da MEC AM, no Rio de Janeiro, e Rádio Nacional de Brasília AM. Mata Atlântica e Cerrado, Natureza Viva!

Por vezes, uma história gera outra, formando redes radiais entre Mara Régia e sua audiência, teias que envolvem e entrelaçam as próprias pessoas que a ouvem. Ano passado, quando fui diagnosticada com um agressivo câncer de mama, Mara Régia considerou importante usar meu caso para informar e conscientizar “suas” mulheres da floresta.

Em longa conversa, falamos do diagnóstico, do tratamento, das agonias e esperanças de uma pessoa em tratamento de uma doença grave. Semanas depois, me liga Mara Régia:

– Amiga, precisamos fazer nova entrevista. Dona Maria, lá de Ananindeua, no Pará, anda perguntando sobre você e sobre como anda o seu tratamento. Ela quer saber se a receita do açafrão deu certo.

Fizemos outra entrevista, e mais outra, e muitas outras. Há poucas semanas, recebo um e-mail do Joaquim José, de Macaé, no Rio de Janeiro:

– A Mara Régia me falou do seu uso do açafrão para tratar do câncer. Queria muito que a senhora explicasse como funciona e me mandasse a receita. Ofereço-me para mandar a receita por zap, onde estico a conversa. Pergunto como está a Mara Régia, se a viu recentemente, no Rio ou em Brasília.

– Que nada, quem me dera, responde Joaquim. A Mara Régia eu não conheço pessoalmente, mas é como se conhecesse de perto porque acompanho a voz dela pela Rádio Nacional há mais de 20 anos. Não tem domingo que ela não fale comigo.

Pra quem a conhece pessoalmente, Mara é ao mesmo tempo intensa e leve. Intensa na luta permanente em defesa dos direitos humanos, na voz assegurada às quase sempre anônimas mulheres da floresta, no combate aberto à violência doméstica e a todas as formas de opressão da mulher e do povo brasileiro. Leve no sorriso aberto, no abraço apertado, na sensação de aconchego que se sente ao lado dela.

Com Mara, a prosa volta sempre para o programa Natureza Viva, levado ao ar das 8 às 10 da manhã, e retransmitido no Acre pela Rádio Difusora Acreana num outro fuso horário. Os assuntos tratados? De tudo um pouco, das dicas de remédios caseiros ao impacto das mudanças climáticas e do Cadastro Ambiental Rural – CAR na agricultura familiar.

Na prática, Mara Régia é uma grande e fascinante tradutora. O negócio dela é transformar temas complexos em informação decodificada e acessível às populações da Amazônia. Para isso, conta causos, inventa radionovelas, dramatiza, adora brincar com a própria voz, que já é linda uma quantidade. E isso não vem de agora.

Uma pesquisa da Universidade Metodista de Piracicaba em 2013, quando o programa completou 20 anos, constatou que todas as lideranças comunitárias da Amazônia conheciam o programa Natureza Viva, e que cerca de 77% já haviam adotado pelo menos uma dica da Mara Régia.

Em 2000, Natureza Viva perdeu a frequência, deixou de ser transmitido pela então Radiobrás, hoje EBC, Empresa Brasil de Comunicação, mas graças a parceria do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) e do Fundo Mundial para a Natureza (WWF-Brasil), que desde 1993 apostaram na ideia de traduzir o conceito de sustentabilidade para os povos da floresta, o programa não sofreu descontinuidade.

Ganhou espaço em rádios comunitárias como a Viva Rio, RJ, e a Gameleira. Além disso, consolidou seu espaço na Rede Aldeia de Rádios Educativas do Acre e na Voz das Selvas, como é também conhecida a Rádio Difusora Acreana que tem sede em Rio Branco.

Após três anos, de volta aos microfones da Nacional, o programa continuou sua trajetória de sucesso e hoje alcança mais da metade do território nacional, chega em toda a região Norte e se estende para o Maranhão, Piauí, para vários outros estados do Nordeste, do Centro-Oeste e mesmo do Sudeste e do Sul, atingindo potencialmente uma audiência de 7 milhões de pessoas. Fosse a pesquisa repetida, provavelmente os índices de audiência seriam muito maiores.

“É assim mesmo”, concorda desde Xapuri o seringueiro Raimundo Barros, o Raimundão, primo de Chico Mendes: “por aqui no domingo a gente só sai de casa depois do programa da Mara, porque ela traz sempre uma ideia boa para melhorar a vida da gente.  O tempo que o programa ficou fora do ar, dizem que por problemas técnicos (maio de 2013 a fevereiro de 2014), acordar cedo não tinha a menor graça”, completa Raimundão.

Com tanta experiência (23 anos no ar), com o seu quadro “Natureza Mulher” sendo o xodó de milhões de mulheres Brasil afora, era para Mara Régia, uma das maiores especialistas em Gênero e Comunicação no Brasil, ser uma jornalista muito convencida. Mas não é.

Nem mesmo os muitos prêmios recebidos ao longo da carreira – Prêmio Towards 2000; Prêmio Embrapa de Reportagem Troféu Gaia (1996), Prêmio Cláudia categoria Trabalho Social (2004) e por suas ações sobre gênero e meio ambiente em 2005, nem o privilégio de comandar o programa sozinha desde 1997, a fazem mudar de tom.

Assumidamente uma mulher moderna do meio urbano, a carioca Mara Régia Di Perna, moradora de Brasília há quase três décadas, deixa clara sua opção pelos povos da Amazônia. “É uma relação profunda, de muita amizade. Não posso viver sem o contato com a natureza, com as águas dos grandes rios e com a sabedoria dos povos da floresta”, resume Mara, essa mulher-rede que carrega no nome a flor símbolo da Amazônia: vitória régia. Haja majestade!

Zezé Weiss – Jornalista. Matéria publicada originalmente em 23 de junho de 2016. 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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