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Nos caminhos do tempo: Catarina e Félix

Nos caminhos do tempo: Catarina e Félix

Tem dia é muito bom de ver, está bem azul o mar”.  (Catarina Kerexu, entrevista a Tupã Ra´y. 2017)
Quem assiste o documentário “Caminhos do Tempo” de Alberto Alvares Tupã Ra´y não pode deixar de admirar dona Catarina Kerexu e seu esposo Félix Karai Mirim, herdeiros da sabedoria guarani. O cineasta grava o relato da longa caminhada da família e de seus filhos, netos e bisnetos, que saem do Rio Grande do Sul, com paradas em aldeias de cinco estados, até chegar em Itaipuaçu, (RJ). Está tudo lá: o nascer da aldeia, a construção da casa de reza e da escola, a religião, a roça, a culinária, a música, a alegria das crianças, o mar azul, a aurora, o pôr do sol, a visão de mundo dos Guarani.
Por José Ribamar Bessa Freire/TaQuiPraTi
Aldeia%20Sitio%20do%20C%C3%A9u%2C%20Itaipua%C3%A7u%20ago%202014A primeira vez que ouvi falar de dona Catarina e do txeramoi Félix foi em 2004 no Curso de Formação de Professores Guarani em Governador Celso Ramos (SC), quando elaboramos o guia de fontes orais para identificar as pessoas sábias de cada aldeia onde viviam os alunos. Geovane Tataendy Gonçalves, o filho, preparava monografia sobre ervas medicinais e Vanderlei Weraxunu da Silva, o genro, um estudo comparativo entre a língua guarani antiga e a atual, ambos com dupla orientação: na academia, a do professor e, na aldeia, a de Félix e Catarina, cujos saberes ancestrais percorreram vários tekoas: Iguaporã (RS), Marangatu, Itaty e Pindoty (SC), Pakuri´ty (SP) e Tekoa Porã (ES).
Foi de lá, da aldeia do Espírito Santo, que o Karai Felix me telefonou várias vezes em busca de uma terra boa e tranquila para viver de acordo com o “nhanderekó” – o jeito de ser guarani. Ele ouvira falar da fazenda abandonada Campos Novos, em Cabo Frio, que havia pertencido aos jesuítas, cujo cemitério indígena guarda um pedaço da história de povos tupi-guarani. A pesquisadora do Pro-Índio da UERJ Valéria Silva foi até lá, mas o lugar já estava ocupado pelos sem-terra e . Continuamos a busca por alternativas e encontramos outro lugar que tinha um céu azul anil.
Céu Azul
dona%20catarina%2C%20netosEra um sítio localizado na fronteira com o Parque Estadual Serra da Tiririca, na região conhecida como Barra da Saia, em Maricá, posse de três amigos, um deles Eduardo Kaujorge, funcionário da Funai. Eles decidiram doá-lo a Alberto Alvares que propôs compartilhá-lo com Félix e Catarina. O casal se deslocou, então, de mala e cuia para lá com toda a família e ali nasceu uma nova aldeia guarani. A doação foi sacramentada no dia 22 de janeiro de 2014, em uma reunião com várias entidades – Uerj, Projeto Saberes Indígenas na Escola, Museu do Índio – conforme ata guardada nos arquivos do Pro-Índio.  Estava criada a Tekoa Ara Owy (Aldeia Céu Azul).
Alberto, que é também professor de guarani na Universidade Federal Fluminense, fez o documentário de 35 minutos, todo ele falado em língua guarani e legendado em português. Começa com imagens de rara beleza do amanhecer na Serra da Tiririca. Um galo canta. A câmara se desloca para Félix que, sentado debaixo de uma árvore, relata a longa caminhada até chegar a Céu Azul:
– “Nós, Guarani Mbya sempre nos alegramos ao ver a mata perto do mar. Tudo isso nos traz saúde”.
Cenas mostram jovens, mulheres e crianças que erguem a aldeia em um mutirão sem derrubar uma única árvore.
– “A mata tem seus guardiães. Nós, Mbyá, cuidamos da mata. Os brancos pegaram toda a mata bonita. Por isso, já não vivemos como antes, mas a gente luta para manter o nosso modo de ser, o nhanderekó”.
Os Guarani tiram leite de pedra. Depois de percorrer o terreno pedregoso e ruim para plantação, a câmara entra com Félix no milharal. Ele fala do milho sagrado e explica sua importância para o .   
– “Se chover, vai ter milho” – diz.
Choveu. Teve milho. “Se tiver pilão, nós socamos o milho para fazer maimbe – explica Dona Catarina, enquanto prepara xipá, o pão guarani. É ela que ocupa a parte final do documentário, contando as suas sabedorias.
A parteira
catarina%20e%20netosMuitas crianças das aldeias por onde passou nasceram com a ajuda da experiência da parteira Catarina. Na entrevista, ela fala dos netos:
– Estou muito feliz aqui. Depois de morar no Espírito Santo, viemos pra cá porque lá tinha pouca mata e poucas plantas. Meus netos se sentem bem aqui, a cada dia acordamos e amanhecemos bem. Ninguém adoece, as crianças estão com saúde – diz com um riso alegre e expressivo, explicando que Nhanderu iluminou o caminho até a aldeia “para alegrar o nosso espíritoPor isso nós viemos na caminhada em direção ao nascer do sol. A nossa alma gosta mais de viver onde o sol nasce”.
Mas os problemas começaram. Um incêndio, talvez de origem criminosa, devorou uma casa onde se encontravam os instrumentos musicais, que foram repostos com ajuda de amigos de fora. A casa foi reconstruída com o trabalho de todos. Enquanto amarrava os bambus, Félix explicou que tinham de ser retirados na fase certa da lua para evitar o cupim. Construíram ainda um banheiro com tratamento ecológico e a moradia de Vanderley Weraxuni, sua esposa e os seis filhos.  
Nasceu, em setembro de 2016, a primeira criança da Tekoa Ara Owy, Eduardo, bisneto de Felix e Catarina. A aldeia se prepara para o Nhemongaraí, a cerimônia de batismo na Opy – A Casa de Reza, quando receberá de Nhamandu o guarani.
Numa reunião na sala do Programa de Estudos dos da Uerj, que contou com a presença do casal Felix e Catarina, a então secretária de de Maricá apresentou o currículo e um projeto para formar professores. O txeramoi escutou tudo com atenção e deu o xeque-mate:
– Envie a merenda escolar e as carteiras, pague o salário dos professores, o resto cuidamos nós. Sabemos o que devemos ensinar às crianças.
Arandu: os saberes
catarina%20sabedoriasO nascimento e a infância na aldeia são ocasiões para discutir o parto e o corpo da mulher como lugar de conhecimento e como território – explica a antropóloga guarani Sandra Benites em sua dissertação de mestrado. Dessa forma, dona Catarina herdou da Arandu – os saberes repassados através das narrativas orais para evitar desacertos na educação e na saúde das crianças, cuidando para que não fiquem deprimidas e assustadas causadas pelo nhe'ẽ mondyi. O espírito assustado traz nhemirõ, ou seja, tristeza e depressão, a ponto de a criança querer voltar para o amba dela, que é a morada celeste. 
As histórias de Nhandesy Eté – figura feminina da cosmologia guarani – eram bem conhecidas de dona Catarina, para quem a saúde das crianças depende do bem estar da mãe. Mães com problemas psicológicos, estressadas, tristes, vivendo na correria, pressionadas, certamente ficarão poxy, ou seja, revoltadas, impacientes e, na maioria das vezes, transferem para os filhos esses sentimentos. O que a mãe está sentindo, seu filho também sente. Isso tem a ver com a caminhada de Nhandesy na terra. Para educar, é preciso estar guapy – calma, tranquila.
Sandra Benites, que era amiga de dona Catarina, diz que as narrativas de Nhandesy Eté (Nossa Mãe verdadeira) funcionam como uma espécie de arquivo vivo da sabedoria das mulheres dentro da organização social guarani.
O adeus
Catarina%20mar%20azulAssim que começaram as medidas mais restritivas contra a covid, no ano passado, dona Catarina retornou ao Espírito Santo. Foi internada na UTI com o coronavírus e nesta quinta (22) seu filho Geovane informou:
– Perdi minha mãe pra esse maldito vírus criado pelo homem branco.
Perdemos dona Catarina, uma das 540 mil pessoas que morreram de covid no . O governo do gângster, na expressão de Spike Lee, buscava propina em vez de vacina e vetou até água potável aos indígenas.
– Que a justiça seja feita. Que essa gente ruim que matou sem dó os mais frágeis, que roubou e violou os povos ancestrais, paguem caro por seus feitos – postou Alexandra Moreira nas redes sociais.
Ficam aqui as nossas homenagens a essa sábia guarani, dona de um sorriso encantador e de uma alegria de viver, que deixa saudades. Não foi em vão sua passagem pelo planeta.  Ao txeramoi Felix e à sua descendência fica a certeza de que ela foi acolhida por Nhanderu num dia em que o azul intenso dominava o céu e o mar.
P.S. 1 – Fotos de Alberto Alvares retiradas do filme “Caminhos de tempo” (2017, 35 minutos) com trilha sonora do Grupo Ara Owy (Céu Azul), produzido pelo projeto Saberes Indígenas na Escola (SIE), coordenação geral de Ana Rebelo (UFMG) e coordenação no Rio de José R. Bessa Freire (UERJ).
P.S.2 – Sandra Benites: “Viver na língua Guarani Nhandewa: mulher falando”. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) – Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018 sob a orientação de Bruna Franchetto.
P.S.3 – Ver também Emerson José Gonçalves: O saber compartilhado na Filosofia: Cosmovisão Guarani Mbyá e a formação em . Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 2017, sob orientação de Mauro Guimarães.
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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