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O CÉU SOBRE A CIDADE

O CÉU SOBRE A CIDADE

O céu sobre a cidade

Reflexões a partir de uma realidade ficcionada

Por Célio Turino/Mídia Ninja

No mais escuro dos becos, onde o vento sussurra segredos esquecidos e as sombras dançam como almas penadas, do bueiro mais fétido, nasce a história de Escobar Lodaçal. Seu início foi um murmúrio em meio à neblina, numa daquelas manhãs em que a cidade ainda sonhava em fugir de si mesma. Envolta em trevas, a biografia do personagem se entrelaçava entre o místico e o abominável. Seu passado era uma de baralho marcada, um ás de espadas enfiado num monte de cartas falsas. O soturno navegava por um mar de cinzas que tomava conta de parte de corações e mentes de gente ressentida.

Começou na rede mundial de computadores, como um nome sussurrado por lábios invisíveis, que logo se tornaria um grito sinistro. Não era um homem comum; não, jamais poderia ser. Lodaçal era a encarnação de um mal sutil, vigarista de vazia, um charlatão que moldava o destino na escuridão que habita o coração dos homens. Um sujeito que, de tanto aprontar, quase chegou a fazer carreira como cafetão da fé, pastor de almas sebosas. Mas preferiu caminho mais prático, afinal, quem precisa de igreja quando se tem internet? Foi assim que o personagem soturno iniciou carreira na arte dos golpes digitais.

Mal saído da adolescência, sua índole já estava colada em sua alma. Sob o comando de um pseudopastor, compôs uma malta junto a outros obreiros do crime; o objetivo: aplicar golpes contra humildes correntistas de bancos. Com a destreza de artesão dos golpes digitais, identificava os otários, que é a forma com que, até hoje, se refere às suas vítimas e seguidores. No nascedouro da Era Digital, Escobar Lodaçal escolhia suas futuras vítimas entre as mais suscetíveis e frágeis, em sua maioria velhinhos que mal sabiam manejar um mouse de computador.

O esmero da maldade dele era cirúrgico, ainda não havia o “Zap” e ele utilizava mensagens eletrônicas via e-mail das vítimas, atiçando incautos ávidos por dinheiro fácil, desesperados atolados em dívidas, ou então apavorava pessoas idosas com a assombração “nome sujo” por conta de boletos inventados. Era um trabalho de formiguinha, é verdade, mas que rendia frutos; ou melhor, rendia aposentadorias roubadas.

Tudo começava com um clique, a tinta digital de um e-mail, uma mensagem sem face que cruzava as linhas do desconhecido para chegar até os imprecatados. Um simples clique e em questão de minutos economias se evaporavam. Pelas mãos da quadrilha, vidas eram drenadas, sonhos apagados e contas bancárias secavam.

O truque, aparentemente, era simples: cabia a Lodaçal indicar somente os e-mails dos mais vulneráveis, a finalização do trabalho ficava por conta dos demais meliantes, que extraiam cada centavo das vítimas. Perdidos na neblina digital, os idosos mal compreendiam o que lhes havia atingido.

Economias minguavam em segundos, poupanças acumuladas para o tratamento de doenças, ou até mesmo economias guardadas para necessidades básicas, como aluguel, alimentação ou conta de luz e água. Nada lhes escapava, nem viúvas e moribundos, tudo em nome de um “empreendedorismo” sem escrúpulos. Queriam enriquecer dando golpes. Escobar Lodaçal foi pioneiro na aplicação de golpes digitais, esses, que nos tempos atuais, infernizam e infelicitam a de tanta gente, via WhatsApp e telefonemas de contas falsas.

Para Lodaçal esses crimes não passaram de ensaio, prenúncio de algo maior. Descoberta a quadrilha, ainda no limiar do século XXI, foram quase todos presos e levados a julgamento. Menos um, que teve a pena abrandada por delatar os comparsas, trair o chefe da quadrilha, pastor da Igreja que ele frequentava, e os sócios do crime. Desde aquele momento, Escobar Lodaçal lapidou a carreira que iria rastejar nos recantos mais obscuros da internet, como vampiro sedento a sugar economias e apertar pescoços. Voz e mãos espectrais dariam mais golpes com a precisão de um cirurgião macabro.

Em vez de selar o destino do criminoso, a ação da polícia e a sentença da revelaram-se apenas obstáculo transitório. Quatro anos e meio, sentenciou o juiz. O de pena, assim como a justiça, foi distorcido pelas artimanhas daqueles que dominam a arte da manipulação. Durante oito anos o cumprimento da sentença arrastou-se como um cadáver em putrefação, até que a pena expirou. O profeta do mal ergueu-se das cinzas, agora com nova face e profissão: coach milionário, vendedor de sonhos falsos, pregador de uma teologia de prosperidade que promete riquezas só acessíveis àqueles inescrupulosos o suficiente para segui-lo na vigarice.

O que aconteceu entre a condenação não cumprida e as medidas que tomou para escapar da prisão e virar milionário é algo obscuro. Não se sabe quem pagou os advogados nem a origem da fortuna amealhada no período. E assim, o profeta das sombras voltou às ruas como coach milionário com milhões de seguidores.

Sabe-se também que Lodaçal nunca anda sozinho. Ao lado dele, sempre aparecem sombras, figuras grotescas que se misturam às trevas. O influencer fisioculturista, homem de músculos esculpidos cuja verdadeira força reside em sua capacidade de fornecer os ingredientes químicos para a fabricação da morte em pó branco, seja cocaína ou crack. Junto a este, espectros disfarçados de homens, trocando carros de luxo por drogas, como se estivessem negociando os pecados do . Até que ele se filia a um partido de “compra e venda”.

O presidente do partido, criatura de sorriso pútrido, cujas palavras, “- você vai virar comida para peixes”, reverberam como um cântico fúnebre nas mentes daqueles que ousem desafiá-lo. Sob Partido Político controlado pelo crime organizado que, anos antes, tornara a cidade refém de atentados e incêndios no transporte coletivo, transforma-se em instrumento para assaltar a cidade via candidatura a prefeito. E o rio das estaria prestes a virar um curso de horror.

Impulsionado pela fome insaciável de poder, aliado ao crime organizado e a bilionários inescrupulosos, Escobar Lodaçal é como um tenor em uma ópera trágica a cantar alto as suas propostas mirabolantes e incoerentes. Proferindo injúrias e difamações com o mesmo destemor de quem já perdeu a conta de suas próprias mentiras, desferia golpes contra a razão e a sanidade. Os demônios do medo e a raiva ancestral incitavam a população a seguir o messias das sombras. Trevas encobriram a cidade.

As regras eleitorais, essas barreiras frágeis que deveriam proteger a democracia, eram mero detalhe para ele. Desrespeitá-las era questão de princípio, uma espécie de filosofia de vida. A justiça eleitoral, aquela guardiã cega e surda, permaneceu tíbia enquanto os luciferianos se aproximavam cada vez mais de seu objetivo profano: dominar a cidade e a partir da cidade, e depois o país, como escravizadores de almas. A imprensa, essa mercantil, que se compra e se vende, ecoou entre o silêncio, a cumplicidade, o comportamento atônito e a normalização do mal, quem sabe até torcendo para que esse show de horrores virasse um Reality Show.

Lodaçal agigantava sobre a cidade como uma sombra que não conhece limites. Faltava pouco para o dia em que o golpe seria desferido. Cinzas encobriam a cidade como se a própria pressentisse o mal que estaria por vir. Vigarista, oportunista e vulgar, mas também reflexo de uma sociedade que, de tão perdida, prefere seguir um vendedor de ilusões do que enfrentar a dura realidade. Afinal, como diz o velho ditado, agora atualizado: “em de cego, quem tem um olho é coach”.

A realidade ficcionada para por aqui.

Será que a verdadeira tragédia são figuras pestilenciais como Escobar Lodaçal, ou esses são apenas reflexo, catalizadores?

O horror real reside nas almas daqueles que, aferrados às suas ganâncias, estendem a mão ao abismo, acreditando que podem domá-lo. Não podem, mas a ganância é tanta que, ao atirar-se no abismo, pouco se importam com os demais, os milhões que chafurdarão ainda mais no lamaçal, sem jamais conseguir sair.

Sabem que os poderes que detém, de tão podres, sempre os salvam. Saltos ao abismo não são acidentes fortuitos, nem expressão de oportunismo isolado, há os que se beneficiam deles, do crime organizado às grandes fortunas amealhadas sabe-se lá como. Atirando-se ao abismo, resultados eleitorais podem ser sentença de morte; há não poucos anos, centenas de milhares morreram sob uma peste que poderia ter sido melhor controlada caso o passo eleitoral tivesse sido outro. Vitórias eleitorais como essas não são redenção, mas desastre.

Profetas das sombras são coroados não por seus méritos, mas pela fraqueza de uma sociedade que, perdida na escuridão, abraça o vale-tudo como única verdade. Quando isso acontece, as ruas das cidades, e os lugares do mundo, tornam-se túneis de um pesadelo sem fim onde o terror caminha livremente. A esperança, como um fantasma, é esquecida em algum canto sombrio da história.

Parte da população, aqueles que outrora sonharam fugir de si mesmos, passam a ver o abismo como uma possibilidade, como uma resposta a seus anseios mais obscuros, revelando em sua escolha o vazio que habita seus corações. É onde deveria entrar a Cultura e Arte, mas que ainda não entra, ainda não chega. Enquanto isso, assistimos derrotas coletivas, como um espelho quebrado a refletir a alma de uma sociedade cansada, desesperada. No desespero, disposta a seguir qualquer um que lhe prometa uma saída, mesmo quando a saída é um túnel a conduzir ao abismo sem fim.

Uma nova cultura política deve servir para limpar o céu envolto em cinzas, encerrando tenebrosos dias que se fazem noite. Luz ou escuridão? Pessoas, quando encurraladas, são capazes de entregar seus destinos a monstros, desde que esses monstros falem a que elas querem ouvir. Personagens funestos que aparecem de tempo em tempo são apenas o começo, porque o fim, esse, já estará escrito nas paredes sujas das ignorâncias e dos medos. Pode também haver um raio de sol a iluminar corações e mentes, produzindo uma vitória coletiva a evitar que as pessoas sigam reféns das sombras e das cinzas. O tempo está turvo, mas o sol há de brilhar mais uma vez.

Fonte: Mídia Ninja

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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