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O presidente pode nos matar

O presidente pode nos matar

Por Iêda Leal

Ao contrário da experiência mundial e na contramão de todas as evidências, em 24 de março o presidente do Brasil fez um pronunciamento à Nação em cadeia nacional para propor o indefensável: romper com o distanciamento social que protege do contágio e salva vidas.

Recém-chegado de uma viagem internacional em que mais de vinte membros de sua comitiva voltaram infectados, o presidente – que declarou ter testado negativo, sem contudo apresentar os resultados do exame e, recentemente, vem admitindo que “talvez possa ter contraído o vírus e ter sentido sintomas leves”, insistindo na tese irresponsável de que a “Covid-19 não passa de uma gripezinha,” contribuiu para desmobilizar a população brasileira e, dessa forma, fragilizou as possibilidades de vencermos a pandemia.

O resultado veio a galope. Desconsiderando a gigantesca subnotificação por falta dos testes e capacidade de diagnóstico, entramos no mês de maio com mais de 6 mil mortes, quase 100 mil pessoas infectadas, e como o país de maior contágio no mundo. Enquanto em vários países uma pessoa infectada contagia apenas uma outra, no Brasil, a transmissão é de quase 3 por pessoa.

Do alto de sua responsabilidade civil, o presidente ignorou o processo de transmissão e, mesmo sob a dúvida nacional de haver testado positivo, fomentou aglomerações, participou de atos públicos, abraçou e fez “selfies” com pessoas, colocando na linha de frente da letalidade física, social e econômica um sem-número de brasileiros e brasileiras, boa parte deles dos segmentos mais vulneráveis da população.

Ante essa realidade insana, em que a pandemia avança sobre as pessoas e comunidades mais pobres, em que não há testes nem leitos de hospital suficientes, em que milhares de seres humanos morrem sem sequer terem sido atendidos, em que outros milhares de pessoas mortas são enterradas em covas rasas,  em que milhares de famílias não podem se despedir de seus mortos,  vale reiterar a pergunta feita pelo MNU em seu Manifesto: Está o presidente propondo mortes em massa do povo no país?

Ante essa realidade trágica do enfrentamento da pandemia, com centenas de profissionais de saúde perdendo a vida por falta de EPIs, com cidadãos e cidadãs vendo a morte chegar, anunciada, pela falta de respiradores, resultado da política criminosa, em meses passados, de sucateamento do sistema público de saúde, voltado para a política de desmoronamento do SUS e de privatização da Saúde, ao propor o livre acesso à contaminação comunitária, o presidente do Brasil só pode mesmo estar querendo nos matar.

Contrariando recomendações de organismos de saúde internacionais e nacionais, que têm sido seguidas por chefes dos Estados, governos estaduais e municípios, para combater a pandemia do Coronavírus, o presidente, do alto de sua crueldade e arrogância, segue manifestando-se contra a quarentena, a única medida capaz de romper a rede do vírus, segundo a OMS. Em consequência, começam a morrer em massa as pessoas negras, do campo, da favela, pobres e indígenas.

O presidente atenta, portanto, contra a vida da população brasileira. Atenta contra o povo negro. Da mesma forma que seu governo, ao desmontar o que ainda restava da proteção aos trabalhadores, a MP 97, ao dificultar a entrega dos R$ 600 aprovados pelo Congresso Nacional para socorrer famílias em situação de emergência máxima, o presidente desta Nação que um dia há não muito tempo  lutou pra proteger o bem-viver de seus 210 milhões de habitantes, continua, a ferro e fogo, forjando caminhos para a nossa morte.

Mas nós combinamos de seguir lutando para seguir vivendo. Nós, negros e negras, juntos com outras parcelas da população, vítimas da sua crueldade, resistiremos à sua tentativa de nos eliminar.

Ao contrário do que diz o presidente, ninguém de nós é covarde por respeitar o distanciamento social. Covarde é quem, em defesa de uma economia que privilegia muito poucos, coloca em risco a vida da maioria da população, principalmente a das comunidades negras, faveladas, periféricas e pobres.

Somos fruto de uma história de Resistência. Resistimos num país que ajudamos a construir com a força do nosso trabalho. Sobrevivemos ao genocídio em curso nessa sociedade racista. Apesar do racismo social e de Estado, o povo negro segue mobilizado pela vida. Resistir, resistir, resistir!! Estamos em isolamento social! Vamos continuar.

Em Resistência, reiteramos o estabelecido pelo MNU no Manifesto de 25 de março: Exigimos que o governo adote medidas concretas para proteger a população contra o coronavírus:

  • Proteção à população negra, favelada, periféricas e em situação de rua;
  • Proteção às comunidades quilombolas, ribeirinhas e indígenas;
  • Investimentos imediatos no Sistema Único de Saúde (SUS), com capacitação das equipes e reorganização dos programas de Saúde da População Negra;
  • Garantia de todo atendimento preventivo de saúde à população negra e pobre até o fim dos riscos da pandemia do coronavírus;
  • Proteção social e econômica da população mais vulnerável, com programas de suporte financeiro, fornecimento de materiais de limpeza, sobretudo sabão, água e álcool gel;
  • Fornecimento de todas as possibilidades de testes, no caso de suspeita de contaminação e de tratamento imediato, com atendimento nas áreas urbanas, rurais e ribeirinhas;
  • Manutenção do emprego, proteção aos trabalhadores(as) sem vínculo e às empregadas domésticas.

mnu

SOMOS HERDEIROS E HERDEIRAS DE DANDARA E ZUMBI!

INSPIRADOS NA BATALHA QUE TRAVARAM PELA VIDA, ESTAMOS EM LUTA! IMPEACHMENT JÁ

MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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