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Por que as mulheres negras não podem…

Por que as negras não podem parar de marchar

“Os nossos passos vêm de longe”, repetem como um bordão as mulheres negras. Na região Norte, mais especificamente na Amazônia paraense, a luta de mulheres negras é uma longa jornada que nasce a partir de lideranças ancestrais e se mantém viva até os dias atuais.

Por Roberta Brandão

Felipa Aranha, liderança de um dos maiores quilombos do Brasil, o Mola, localizado em Cametá, nordeste do Pará, certamente foi uma das pioneiras. Na frágil documentação sobre o protagonismo das mulheres na maior revolução popular do país, a Cabanagem, surge o nome de outra Maria, Lira Mulata.

As erveiras da Feira do Ver-o-Peso, mulheres negras, afroamazônidas, remanescentes dos , que usam a tecnologia de seu como uma espécie de contrapoder, se somam nessa caminhada. Assim como as militantes do Centro de Estudos do Negro do Pará (Cedenpa), associação composta 75% por mulheres negras, que combate o racismo há mais de quatro décadas.

Relembrar as Marias e tantas outras lideranças já se tornou uma tradição da Marcha das Mulheres Negras Amazônidas, que ocorre em Belém. Uma vez por ano elas saem às ruas da capital paraense para marcar os muitos passos longínquos e resistentes da caminhada de outras mulheres negras. Na sexta edição da marcha, foi o momento de celebrar as conquistas, mas também de lutar pela garantia de direitos básicos.

A marcha anual em 25 de julho é uma alusão ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. A importância da data surgiu em 1992, durante o 1º Encontro de Mulheres Negras, na República Dominicana. E, no Brasil, a data celebra também o Dia Nacional de Tereza de Benguela, líder quilombola que resistiu à escravidão.

Neste ano, a marcha pôde voltar a ser presencial, ao contrário de 2020, quando precisou ser virtual, por conta do momento de maior gravidade da pandemia do novo coronavírus. A satisfação de poder se reunir animou as cerca de 100 mulheres nas ruas e 20 na organização.

Com máscaras PFF2 e álcool em gel, elas iniciaram a concentração da marcha no Quilombo da República (QR), um espaço preto simbólico. “A presença do QR, enquanto território de negritude, é importante. Belém tem poucos espaços de negritude, a implementação do QR naquele espaço que, simbolicamente, pela historiografia, seria um antigo cemitério das pessoas escravizadas. A presença do QR é uma forma de demarcar o direito à cidade e a presença do território da negritude, por vezes, incomoda”, explica Maria Malcher, militante do Cedenpa há 11 anos.

O QR da República é um espaço de empreendedorismo e de manifestação da cultura afro. Atualmente, é um espaço que acolhe o coletivo de mulheres negras empreendedoras, Pretas Paridas. São mais de 18 empreendimentos de mulheres pretas, que vão desde tecidos vindos do continente africano até marcas autorais com designers amazônicos.

A LUTA NACIONAL PARAENSE

Na capital paraense, a Marcha das Mulheres Negras Amazônidas foi iniciada em 2016. A partir da articulação da juventude do Cedenpa com a Rede Fulanas – Negras da Amazônia Brasileira (NAB), uma rede composta por 250 mulheres negras, com as presenças de representantes dos estados do Acre, , Amapá, Pará, Tocantins e Rondônia e da Amazônia maranhense. Mas os passos iniciais da organização dessa marcha foram iniciados um ano antes, em Brasília, quando cerca de 20 mil mulheres negras e não brancas invadiram a Esplanada dos Ministérios lutando por .

A proposta dessa articulação pioneira de mulheres negras no âmbito nacional, que resultou na Primeira Marcha de Mulheres Negras, partiu da intelectual preta paraense Nilma Bentes. “A luta das mulheres negras fica imprensada entre o racismo do feminismo branco e o machismo do ”, explica Nilma, que nasceu em um bairro periférico de Belém e é uma das fundadoras do Cedenpa e cofundadora da Rede Fulanas.

Na verdade, a Marcha das Mulheres Negras foi proposta por Nilma Bentes algum tempo antes, em novembro de 2011, em um evento internacional que ocorreu na Bahia. Segundo a professora-émerita da Universidade Federal do Estado do Pará (UFPA), militante do movimento negro desde 1980, Zélia Amador de Deus, o mais importante no episódio da realização da Marcha das Mulheres Negras foi o processo de articulação que antecedeu o ato.

 “O momento preparatório da Marcha abriu a oportunidade do encontro. Ativou a participação das mulheres negras do Norte. Foi um período muito frutífero. Fui ao Amazonas, no Amapá. Até hoje, existem grupos criados nesse período que se mantêm ativos”, explica Zélia.

Bianca Alves, que esteve na Marcha Nacional em 2015, no Distrito Federal, agora, em Belém, no ano de 2021, segura nos braços a filha Zola Ayana Nzinga, de 7 meses. Trancista há 12 anos, integra o Cedenpa e o Pretas Paridas.

À Amazônia Real, ela afirma que foi simbólico participar da Marcha acompanhada da filha. “Nossos passos vêm de longe e vamos fazer com que as nossas dêem continuidade nisso, que é a sobrevivência, a nossa luta diária, mas também esse encontro, onde tem troca de afeto, fortalecimento emocional, psicológico, afetivo e financeiro”, diz Bianca, enquanto se equilibra entre trabalhar, alimentar e trocar a fralda da pequena, com auxílio do companheiro. 

O objetivo da Marcha é o de dar o protagonismo para as mulheres negras, e uma das formas é lutar pela visibilidade.

Dentro do próprio movimento negro nacional, por vezes não se reconhece a negritude amazônica por causa da aproximação de território com a população indigena, explica Maria Malcher. Várias questões, assim, atravessam a Marcha, e uma delas é o racismo. “A gente não quer ser apenas cota, até porque a gente tem um modo de vida muito peculiar. A nossa negritude é diferente da do Rio Grande do Sul”, afirma. Ela considera um privilégio as mulheres negras amazônidas terem contato direto com mulheres indígenas. 

Segundo o último Censo publicado no ano  de 2010,  são 97.348.308 mulheres vivendo no Brasil, sendo que 27,8% delas são negras. Mas na região Norte, elas somam 7.859.539 de mulheres, ou seja, 72,6%  são mulheres negras. O Pará tem uma população feminina de 4.024.244 de mulheres negras (40,3%).

Para a professora Joana Chagas, a categoria raça é uma invenção do colonizador. “Isso é uma questão política do estado racista baseado no mito da democracia racial. Ajudado por Gilberto Freyre, através da criação de um imaginário de uma relação amistosa entre o negro da senzala com as pessoas da Casa Grande”, afirma, para acrescentar: “São lógicas criadas que não permitem a emancipação desse sujeito racializado. Essa coloração diferenciada vai surgir não por conta de um cruzamento, mas devido à variabilidade humana. Como os colonizadores queriam criar uma categoria humana estabeleceu-se essa ideia de mestiçagem”.

No Brasil, o Censo adota a categoria pardo. “O colorismo é muito senso comum e não nos ajuda em nada. Foi a hegemonia que criou esse elemento identitário dentro da variabilidade humana”, avalia a professora.

OS 41 ANOS DO CEDENPA

Em 10 de agosto, o Cedenpa comemorou 41 anos de sua fundação, sendo que pouco mais de duas décadas de sua existência foi atuando num bairro periférico da capital do Pará. A entidade já teve 60 militantes, dos quais 75% são mulheres. Atualmente, são 8 pessoas na coordenação, todas mulheres. Do Cedenpa, saíram nomes relevantes para o movimento nacional de mulheres negras, como a professora Zélia Amador de Deus, a engenheira agrônoma Nilma Bentes,  a  coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro e Indígena do IFPA (Neabi), Maria Malcher, e a doutora em educação, Joana Chagas.

“Há 41 anos, a gente trabalha propondo políticas públicas para a eliminação do racismo através de políticas que envolvam a saúde, o meio ambiente, a área da cultura. Trabalhando com quilombolas e, particularmente, com as mulheres negras”, explica a professora Zélia. O Cedenpa faz parte da Articulação Nacional de Mulheres Negras (AMNB) e há mais de uma década promove o Encontro das Mulheres Quilombolas do Pará.

A associação tem atuação marcante no Legislativo, tendo participado ativamente pela inserção dos artigos 68 e 322 para a regularização das Terras Quilombolas. Na década de 1980, o Cedenpa organizou os encontros de Comunidades Negras Rurais e, posteriormente, de mulheres negras quilombolas. Até 2010, a entidade era organizadora deste evento, que passou depois a ser co-organizado com a das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungo). 

Foi no Pará, no alto Rio Trombetas, que a primeira comunidade de remanescentes de quilombos recebeu o título coletivo e definitivo de suas terras, em 1995. Das 178 comunidades quilombolas no Brasil, 62 foram reconhecidas no Pará. O maior quilombo titulado do Brasil é o da comunidade de Cachoeira Porteira, em Oriximiná (PA). No Marajó, apenas em Salvaterra, 18 quilombos são titulados e ligados à coordenação da Malungo.

“Sempre houve resistência. Quando a população não servia mais ao colonizador, quando as tecnologias dessas populações não serviam mais ao capital, elas se insurgem. Quilombo vem de África, mas aqui tem proporções gigantescas por que junta esse povo da floresta, dos terreiros e das sociedades urbanas”, lembra a professora Joana Chagas.

Os esforços do movimento de mulheres negras no Pará foram refletidos nas últimas eleições. Quatro mulheres negras foram eleitas. Uma deputada federal, Vivi Reis (Psol), e as vereadoras Lívia Duarte (Psol), Bia Caminha (PT) e Enfermeira Nazaré (Psol). De acordo com a Organização Mulheres Negras Decidem, apenas 5% das vereadoras eleitas no Brasil são negras. No Pará, 9,5% das vereadoras são negras – o estado ficou à frente da Bahia, que elegeu 8% de mulheres negras vereadoras.

As ações do movimento negro em despertar o orgulho e a consciência racial na população brasileira, através de políticas públicas, parecem estar surtindo efeito. Houve aumento de pessoas se declarando negras no último Censo, em 2010. Segundo um estudo apresentado pelo IBGE, de 2012 para 2018 houve aumento de 32% da população se declarando preta. 

AS LUTAS DAS MULHERES NEGRAS

O estudo liderado pelo Departamento de Engenharia Industrial do Centro Técnico Científico da PUC-Rio indicou que o número de pessoas pretas e pardas que morreram em decorrência da foi de 55%, enquanto entre os brancos esse número ficou em 38%. No Pará, esse recorte se confirma.

Segundo informações cedidas pela Secretaria de Estado de (Sespa) foram registrados, até o momento, 572.520 casos de Covid-19, sendo que deste total 305.838 foram de pessoas do sexo feminino. Deste contingente, pelo menos 62% foram de mulheres pretas ou pardas. A Sespa informa ainda que foram registrados 16.058 mortes, sendo amarela (55), Branca (803), Índigena (27), Parda (4.088), Preta (181) e não informaram (1.418).

Foi o caso da jornalista e estilista Uliana Mota, que morreu em maio de 2020 vítima da Covid-19. Durante o seu tratamento no hospital e para os trâmites do enterro foi preciso que amigos fizessem uma vaquinha virtual para arcar com custos e dívidas que sobraram da doença. Uliana deixou uma filha de 13 anos, da qual era mãe solo, e uma mãe idosa a qual ajudava na dinâmica financeira da casa. Segundo o IBGE, 64% das mulheres pretas e pardas criam filhos com ausência do cônjuge, enquanto o percentual de mulheres brancas nesta mesma situação é de 56%. 

Na ocupação do trabalho informal, as mulheres negras representam 46,9% desse universo. O serviço doméstico é ainda um cargo de mulher. No Brasil, apenas 1,1% dos homens deixou de trabalhar para cuidar do filho, casa ou algum ente que precise de cuidados. Mas 20,7% das mulheres já enfrentaram essa realidade. E as mulheres pretas representam o dobro das mulheres brancas exercendo essa atividade. A primeira vítima fatal de Covid-19 no Brasil foi uma mulher preta e  empregada doméstica. Cleonice Gonçalves, 63, foi contaminada após o retorno da patroa da Itália.

Negras mães, chefes de família, trabalhadoras braçais e vítimas também do genocídio da juventude preta. São incontáveis chacinas nas periferias da capital paraense. A família de Keyvison de Freitas Lima precisou enterrá-lo com apenas 11 anos, em julho deste ano. O menino foi vítima de bala perdida, no bairro do Barreiro, enquanto brincava na frente da casa da avó. O garoto estava de férias e visitava pela primeira vez a matriarca. 

As necessidades de reverter essa situação movem as Marchas das Mulheres, sempre tidas como fundamentais para o movimento. “Hoje, não é um dia qualquer. É um dia histórico. Belém é a capital que realiza a Marcha das Mulheres Negras Amazônidas. Belém é mulher e Belém é preta. Belém é uma mulher que luta, é mulher ancestral. Belém é uma mulher que caminha no Círio de Nazaré. Belém é uma mulher que marcha ao lado das mulheres de axé. Liberdade a todas nós”. Foi com essas palavras e mais um banho feito pelas mãos pretas de Jucy D’Oyá, mãe de santo e sacerdotisa, que foi iniciada a 6ª edição do evento.

A jornalista Flávia Ribeiro, ou @afrontosaribeiro, como muita gente a conhece nas redes sociais, também caminhou de mãos dadas com a filha, que ora dava as mãos para a avó, a família presente na Marcha. “Eu quero que a minha filha tenha, e ela já tem, essa identidade negra. Não só da gente saber das dores de ser negra, mas que ela saiba das potências de ser negra. A força, a gente já sabe que a gente é forte, né? A importância de ver outras mulheres bonitas, articuladas, mulheres que estão falando, mulheres que não puderam estar aqui, porque a gente fala também dessas mulheres. Olhar para essa marcha e saber que a gente é  realizadora”, afirma.

É esse sentimento de orgulho em ser uma mulher negra que Maria das Graças ensina com seus 68 anos. Sentada enquanto outra mulher preta trança seus grisalhos cabelos, Maria afirma que já marchou muito em sua vida, como cozinheira ou costureira. E diz se orgulhar de usar os penteados afros desde criança. Quando questionada por que escolhia esse tipo de penteado como adorno, responde sem hesitar: “Por que eu  durmo e acordo linda. A mulher negra tem que se orgulhar de quem é”. O único momento em que o semblante de Maria muda é quando ela fala do racismo. Seu tom de voz aumenta e ela diz: “Isso é uma coisa que tem que acabar. O racismo, essa cretinice. Isso tem que acabar”.

 Roberta Brandão – Graduada em Jornalismo, Publicidade e Propaganda, em www.amazoniareal.com.br.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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