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A Corte Celestial: o outro Marco Temporal

A Corte Celestial: o outro Marco Temporal

Anhangá me fez sonhar com a terra que perdi”. (Villa-Lobos. 1933. O canto do pajé nas vozes de Maia e Ana).

Por José Bessa Freire

A Suprema Corte Celestial de caráter supra étnico convocou seus ministros, representantes de diferentes cosmogonias, para julgar o outro marco temporal relativo aos não indígenas que ocuparam terras no Brasil.  Compareceram os criadores do universo de 305 povos originários e os Orixás de matriz africana, que desconstruíram as falácias dos deputados federais (depufedes) da bancada ruralista e formaram jurisprudência para orientar o Supremo Tribunal Federal (STF).

É que na quarta-feira, 7 de junho, o STF retomou o julgamento do Marco Temporal (PL 490), aprovado na última terça, 30 de maio, na calada da noite pela Câmara dos Deputados. Para intimidar os ministros do Supremo, os depufedes se anteciparam e, em regime de urgência, como se sofressem de incontinência urinária, converteram em lei a “tese jurídica” de que os povos indígenas só têm direito às terras que ocupavam antes de 5 outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, que foi assim ferida de morte.  

– Precisamos definir qual é o marco temporal das terras griladas do agronegócio. É o que essa Corte vai examinar – disse na abertura da sessão, sábado (3 de junho), a presidente da Corte Celestial Yepá Buró, a Avó do Mundo, criadora da vida, das pessoas e do universo, reverenciada pelos povos do Rio Negro (AM). A mídia, que está vagando e andando, silenciou, mas o evento teve cobertura exclusiva do Taquipratiilustração de Daiara Tukano em nanquim sobre papel.

CORTE CELESTIAL 

Yepá cedeu a palavra a Maíra, herói mítico dos Awá-Guajá, dos Xetá e dos demais povos tupi-guarani que, invocando na fala do céu os espíritos celestiais (karawara) adornados com cocares e braceletes, disse com a entoação e o ritmo do canto ():

– Desde tempos imemoriais, os Awá sempre habitaram um território tradicional, que foi cortado ao meio pela Rodovia BR-22, na década de 1960 e, nos anos 1980, pela Estrada de Ferro Carajás, o que facilitou a invasão das frentes de colonização do Maranhão. Esses territórios devem ser devolvidos se retrocedemos o marco temporal da ocupação não indígena para 1960.  

Quem concordou com isso foi Omama, em nome dos Yanomami. Ele pediu a retirada imediata dos garimpeiros de suas terras. Nhanderu Tenondé, que não brinca em serviço, pediu um aparte, mostrando que conhece o latinorum jurídico:

Data venia, temos de recuar este marco para o século XIX, quando os Xetá, há séculos vivendo na extensa área no noroeste paranaense e ao longo do rio Ivaí, tiveram suas terras roubadas por colonizadores, entre eles a família Dallagnol, que migrou da Itália no séc. XIX, conforme podemos ver no Datashow que agora exponho.   Todos eles devem ser expulsos das terras que usurparam.

Nhamandu, o pai bondoso, criador da vida e responsável pela manutenção do equilíbrio da ordem universal, chamou a atenção para o caso dos Guarani:

– A nossa história não começa em 1988, nem no séc. XIX. É preciso regredir muito mais no tempo, para o séc. XVIII, quando os Guarani foram reduzidos e escravizados. Honremos a memória de Sepé Tiaraju. Toda terra ocupada por juruás (“brancos”) depois dessa data foi roubada e deve ser devolvida a seus donos originais. A decisão erga omnes deve ser cumprida por todos.

UMBIGO ENTERRADO

– Votamos com o relator – disseram os heróis mitológicos Kamé e Kairu, denunciando o colonizador europeu (Fóg), que desde o séc. XVII começou a se apropriar das terras no Oeste de São Paulo e nos planaltos do Paraná e Santa Catarina e parte do atual Rio Grande do Sul, onde os Kaingang enterraram seus umbigos.

 

Kamé e Kairu defenderam a Terra Ibirama-Laklãnõ dos Xokleng, criada em 2003 e contestada pelo governo de Santa Catarina no STF, por não estar ocupada em 5 de outubro de 1988. Os dois heróis Macro-Jê argumentaram que os Xokleng não estavam lá, porque haviam sido expulsos de suas terras pelos Fóg. Existem 80 casos semelhantes e mais de 300 processos de demarcação pendentes.

– Um desses casos é o dos povos do Acre, entre eles os Puyanawa- argumentaram Quirá e seu irmão Tamacôheróis culturais do povo Kulina, apoiados por Basne Purua rainha da seda, fabricadora de tecidos. Os Puynawa, habitantes seculares do rio Moa, afluente do Juruá, foram sequestrados e escravizados pelo Coronel Mâncio Lima para o trabalho nos seringais e proibidos de falar em Ûdikuî, a “língua verdadeira”.

Representantes de outras cosmogonias também se manifestaram, entre eles os delegados do povo Kanamari, Tamah e Kirah, seu irmão, Akuanduba dos Arara e Wanadi dos Iecuanas, além dos Orixás.

DOCUMENTO ORAL 

A Corte Celestial ouviu o outro lado. O advogado da Bancada da Bíblia, da Bala e do Boi, ali presente, defendeu seus clientes e objetou que não existia qualquer documento indicando que os povos indígenas ocupavam os territórios antes de 1500. 

– Vovó, mostra o documento para ele – disse o berrante e traquinas Exu, representante de todos os Orixás, entre os quais Ogun, Omulu, Xangô, Oxossi, Yemanjá, Oxunmaré e alguns mais.

A Avó do Mundo mostrou os documentos orais arquivados na Suprema Corte Celestial e pronunciou a decisão final:

  1. Considerando que todas – TODAS – as terras situadas em território hoje brasileiro pertenciam aos povos indígenas;
  2. Considerando que não consta nenhum – NENHUM – registro em cartório de que povos indígenas venderam suas terras aos atuais proprietários ou aos seus antepassados;
  3. Considerando, portanto, que todas – TODAS – as propriedades privadas de terra no Brasil têm em sua origem a invasão e o roubo de terras indígenas;

Esta Corte Celestial decreta:

O marco temporal da ocupação das terras por não indígenas no Brasil é 22 de abril de 1500. Portanto, aqueles que não puderem comprovar que seus antepassados compraram a terra dos indígenas depois dessa data, devem desocupá-la. A decisão deve ser cumprida imediatamente, porque a demora prejudica os povos indígenas:  periculum in mora.  

E é aí que mora o perigo.

Cumpra-se. Cabe agora ao STF acatar a decisão, que já foi publicada no DOCC – Diário Oficial da Corte Celestial e enviada por Yepá Buró para a ministra Rosa Weber.

P.S. A presença do autor da coluna em Brasília nos dias 30 e 31 de maio coincidiu com as manifestações contra o Marco Temporal. Nesses dois dias, especialistas se reuniram com outro objetivo: elaborar normas e diretrizes para a atuação da Funai nos processos educativos destinados aos Povos Indígenas de Recente Contato.  Participaram da reunião, entre outros, Neide Martins Siqueira (Funai), Juliana Cabral, coordenadora de Políticas Públicas para Povos Indígenas de Recente Contato, o historiador André Ramos, coordenador de Processos Educativos (COPE) da Funai, Isabel Gobbi (COPE), Marcos Antônio Iusten (CGIIRC), Flávia Berto e Wilmar D´Angelis (Unicamp) – linguistas, Walter Bloss (Programa Waimiri-Atroari), Fernanda Frade e Rosilene Tuxá (MEC), Clarisse Jabur e Beatriz de Almeida Matos (Ministério dos Povos Indígenas), Paulo Ferreira (PNUD) e Iwepe Marcelo (professor Kinja). 

NOTA DA REDAÇÃO: Enquanto o projeto segue para tramitação no Senado da República, o Supremo Tribunal Federal tentou, no último 7 de junho, avaliar a inconstitucionalidade do Marco Temporal. Entretanto, o julgamento foi suspenso no mesmo dia 7, depois dos votos contrários ao Marco Temporal dos ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes e do voto favorável do ministro Nunes Marques, por conta de um pedido de vista do ministro André Mendonça, que tem até 90 dias para devolver o processo. 

Jose Ribamar BessaJosé Bessa Freire – Professor universitário,escritor, cronista e gestor do blog Taquiprati, membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri.

Foto: Taquiprati. 

 
 
 
 
 
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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